ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
DA FOLHAPRESS
“Aqui não tem pastora. Nem consagrada, nem de consideração. [A mulher] é a esposa do…”, José Roberto dos Santos diz e espera os fiéis completarem com ele a próxima parte: “… pastor!”.
“Isso é pra se ficar bem claro, que agora tá uma moda de pastora. ‘Ah, é de consideração…’ Aqui não tem consideração, não”, continua o líder da pernambucana Assembleia de Deus Abreu e Lima. “Cada um fica na convocação [para a qual] foi chamado. O homem é o pastor, e a esposa dele é a auxiliadora. E vai desenvolver o ministério fielmente, com alegria. Amém, meus irmãos?”
Amém, irmãs? A ideia de que uma mulher não pode assumir a função pastoral ainda é realidade em muitas igrejas, sobretudo em alas mais tradicionais do segmento evangélico. Novas gerações, contudo, vêm batendo de frente com o que veem como uma interpretação enviesada da Bíblia.
“Nessa linha mais fundamentalista, as pessoas focam muito no título que a mulher pode ter”, diz a bispa Fernanda Hernandes, 40. “Eu acredito 100% no ministério feminino, e com base bíblicas.”
E também familiares. Fernanda, a Fê, cresceu tendo como referência a bispa Sonia Hernandes, 62, sua mãe, pioneira no pastorado exercido por mulheres. “A última coisa que ela queria era ser mulher de pastor. Ela imaginava que a mulher cristã era essa mulher oprimida.”
Hoje Sonia comanda, junto com o marido, o apóstolo Estevam Hernandes, uma das maiores igrejas neopentecostais do país, a Renascer em Cristo. O casal também está à frente da Marcha para Jesus, maior evento do calendário evangélico latino-americano. É a lembrança da mãe “toda vestida de pink”, blazer e saia, que Fernanda emerge para falar de pregadoras poderosas.
Acontece que o pastor de Abreu e Lima não é uma voz tão minoritária assim entre evangélicos. A gigante Igreja Universal é uma que não dá às mulheres unção para pilotar cultos. “As que têm posições significativas de liderança são casadas com pastores ou bispos”, diz Jacqueline Moraes Teixeira, autora de “A Mulher Universal – Corpo, Gênero e Pedagogia da Prosperidade”.
É grande a massa feminina entre obreiros, que auxiliam o cabeça do culto. Na hierarquia eclesiástica, contudo, elas ficam de fora. Não que não haja mulheres influentes na Universal. “Mas essas lideranças passam por funções familiares”, afirma Teixeira. “É o caso das filhas do bispo Edir Macedo.”
Uma delas, Cristiane Cardoso, capitaneia o Godllywood, que, conforme sua descrição, encarrega-se de “resgatar valores esquecidos em nossa sociedade”. Em 2014, o site da Universal reproduziu um texto em que uma integrante do grupo de mulheres se dispõe a responder por que os templos da igreja não têm pastoras.
“Quando estamos auxiliando um homem de Deus, somos muito mais USADAS pelo Espírito Santo. […] Uma colega de outra cristã, ao observar as minhas fotos do Godllywood, ficou MARAVILHADA. ‘Que pena, minha igreja não tem um grupo para nós como esse!’ Na igreja dela existe pastora, tenho certeza que por causa das ocupações ministeriais, as pastoras não têm o tempo necessário para total entrega.”
Pastores como Ciro Zibordi, da Academia Evangélica de Letras do Brasil, estofam essa linha de raciocínio com a Bíblia, “sempre a inerrante e infalível palavra de Deus”.
“Alguém dirá: ‘Deus não faz acepção de pessoas. A Igreja não é como as Forças Armadas. Não existe hierarquia no meio do povo de Deus. Homens e mulheres podem ser pastores'”, ele já escreveu.
Zibordi sugere a essa pessoa começar por Gênesis. “Por que o Senhor não formou primeiro a mulher e, depois, tomou uma das costelas dela para formar o homem? Porque Ele é soberano e decidiu priorizar o homem.”
Também evoca o apóstolo Paulo, a quem se atribui esta passagem: “Quero, porém, que saibam que Cristo é o cabeça de todo homem, e o homem é o cabeça da mulher, e Deus é o cabeça de Cristo”.
“Se Paulo era machista, o que dizer de Jesus, que escolheu 12 homens [os apóstolos] para compor o ministério da igreja nascente?”, afirma o pastor.
A bispa Fê conhece bem os versículos usados para advogar pelo monopólio masculino no topo. “Sabe aquela história que o texto fora de contexto vira pretexto?”
Paulo, por exemplo, falava especificamente à cristã da igreja de Coríntios, na Grécia. “Era uma mulher oprimida. Infelizmente a maioria delas era analfabeta. A cultura era patriarcal”, ela diz.
Fê cita “Mulheres de Atenas”, a canção de Chico Buarque que fala sobre esposas que “vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas”. “Precisa puxar um pouquinho do contexto histórico. A mulher da cultura grega, ao contrário da romana, que era empoderada, era muito oprimida.”
Pululam nas Escrituras exemplos de mulheres fortes, argumenta a bispa. Dois bons exemplos do Antigo Testamento: a juíza Débora, líder dos israelitas, e Jael, que matou com uma estaca martelada no crânio o comandante do exército inimigo do povo de Israel.
“Se a gente pega o contexto bíblico, qual o maior feminismo genuíno? Quando Deus coloca no centro do plano de salvação uma mulher, Maria”, afirma Fê.
Ainda assim, os tradicionalistas insistem. E este trecho do Novo Testamento: “A mulher deve aprender em silêncio, com toda a sujeição; não permito que a mulher ensine, nem que tenha autoridade sobre o homem; esteja, porém, em silêncio”?
“Vai depender da interpretação teológica de cada denominação”, diz a pastora Elizete Malafaia, 62, que prefere ficar com versículos como Gálatas 3:28: “Assim sendo, não pode haver judeu nem grego, nem escravo nem liberto, nem homem nem mulher, porque todos vocês são um em Cristo Jesus”.
“Jesus rompeu paradigmas e nunca se referiu às mulheres de forma preconceituosa. Foi primeiro para elas que ele apareceu, após ressuscitar”, diz. Só após seu marido, Silas Malafaia, assumir a presidência da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, em 2010, é que a igreja passou a aceitar pastoras.
Rúbia de Sousa, 61, só vê vantagens para igrejas que se abrem ao ministério feminino. “Mulheres costumam ser guerreiras com o coração de mãe. Isso se manifesta no cuidado com as pessoas”, diz a bispa da Igreja Apostólica Fonte da Vida.
Em “Mais que Vencedoras”, seu recém-lançado livro, a bispa Fê fala sobre o “superdelicado tema” da “guerra dos sexos”. Lá apresenta também sua Comunidade Pink (“há muito preconceito com essa cor”), projeto para mulheres, essa “criação amada de Deus”.
Nada que orne muito com o feminismo mais clássico, ao menos em sua acepção progressista. O termo sequer costuma fazer parte do léxico dessas líderes evangélicas. Elizete já disse à Folha: “Sempre pensei em me casar, ter filhos e priorizar o meu lar. Nunca fui feminista. Graças a Deus nasci num lar em que minha mãe tinha prazer de ser mulher, esposa, mãe de 11 filhos e sempre de bem com a vida”.
A busca pela paridade de gêneros é vivida no dia a dia das igrejas, e em diferentes gradações. A fundada por seus pais é mais liberal do que a média. A Renascer tem pastoras divorciadas, ou que nunca casaram, ponto fora da curva até para as instituições que acolhem um pastorado não só de homens.
Mary Hellen Bittencourt, 35, dá “graças a Deus” que “o tempo foi passando, e a mente dos líderes foi se abrindo”. Pastora e cantora gospel, ela apresentou recentemente o Culto da Resistência, reality que colocou de Mara Maravilha a Mister M numa maratona gospel, e que ganhasse quem durasse mais nela.
Muitas Assembleias de Deus deram um chega pra lá na visão mais conservadora e antipastoras, diz. “O papel da mulher na igreja é muito forte. Sem contar as vezes em que muitas delas fazem tudo, e os créditos vão para o esposo.”
Elas têm mais espaço, mas ainda ficam de fora do alto escalão. As maiores igrejas, tanto da linha pentecostal quanto da histórica, são todas presididas por homens. A bancada evangélica nunca foi comandada por uma mulher. A comitiva pastoral que frequenta o Palácio do Planalto sob guarida de Jair Bolsonaro (sem partido) costuma ser toda masculina.
E voltamos ao púlpito de José dos Santos, o ministro evangélico que não tolera uma guiança espiritual feminina. Atrás dele, algumas dezenas de homens. Mulheres só embaixo, acompanhadas de homens. Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Abreu e Lima.