Daniel Medeiros*
O filósofo alemão Martin Heidegger afirmou que somos “seres aí”, entes largados neste mundo, sem uma precedência conhecida ou mesmo possível. Mas, ao contrário de outros entes, seríamos os únicos capazes de perceber nossa existência e, por causa disso, de fazermos algo em relação a ela.
Graças a essa capacidade de nos perceber, podemos também perceber os outros e nos envolver com eles quando estão diante de nós, além de nos preocuparmos com eles quando já nos relacionamos ou quando pretendemos nos relacionar com eles no futuro. Assim, vamos marcando essas relações no tempo, e o tempo se constrói para nós.
O tempo, por sua vez, não existe apesar da nossa existência, mas, sim, graças a ela. Nossos registros definem o passado, e nossos desejos, o futuro. O presente, embora fugaz e inapreensível, é o único que podemos sentir como nosso, íntimo e profundo.
Como o deus Janus da mitologia, vivemos com uma face voltada para a frente e outra para trás. Somos o que fomos. Somos o que queremos ser. E somos porque os outros existem para que possamos dar significado às coisas. Existir vem de “ex-sistere”: um ser que surge de outra coisa.
Nós, largados no mundo, continuamos a construir e reconstruir o que somos pela relação que estabelecemos com outros entes, objetos, bichos e pessoas. Como lembrou a filósofa Hannah Arendt, podemos inclusive refazer o passado pelo perdão e antecipar o futuro pela promessa. Somos, ou podemos ser, senhores de nosso próprio tempo.
No entanto, existem outras formas de relação com o tempo e o mundo. Por exemplo, os aimarás, um grupo indígena do altiplano andino, quando falam do futuro, apontam para trás, e quando falam do passado, apontam para frente. Para eles, o passado é o que conhecemos, por isso está diante de nossos olhos. Já o futuro é o que não podemos ver, por isso está às nossas costas.
Em contraste, nós, filhos da civilização judaico-cristã, vivemos em linha reta, deixando o acontecido para trás e mirando no horizonte inventado do que ainda não aconteceu. Modos de ver e de viver. Por isso, estabelecer marcos no passado para não esquecê-lo e marcos no futuro para não nos perdermos dele é tão importante para nós.
Rememoramos os acontecimentos passados como quem segura uma corda no meio do nevoeiro. Fazemos promessas para o ano seguinte cheios de esperanças de que estaremos aqui para cumpri-las. Daí o fim de ano ser um misto de alegria e, ao mesmo tempo, abrigar certa melancolia. Vivemos mais um ano. Viveremos mais um ano? As duas afirmações não são precisas, pois só podemos testemunhar efetivamente que vivemos o tempo desse respiro que, rapidamente, já passou.
E agora, quem é a pessoa que está respirando de novo? Assim como um colar cheio de contas que insistimos em chamar de “um” objeto, nossa vida é o resultado da invenção/convicção de que somos um, quando na verdade não passamos da vivência de um momento e depois de outro, como fotografias que ganham vida apenas graças ao truque que engana nossa visão.
Não faz mal. Se tudo é uma possibilidade, não há problema em nos colocarmos nesse campo de probabilidade. Festejemos o fim do ano e façamos nossas resoluções para cumprir as promessas esquecidas dos anos anteriores, como uma reedição do eu, com revisão do texto e acréscimo de capítulos.
Afinal, como diria Calderón de La Barca:
“Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.”