Por 24 votos a favor e três contrários, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) do Senado Federal aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das Drogas (45/2023). A proposição segue para apreciação no plenário do Senado Federal, onde necessita ser aprovada em dois turnos por três quintos dos senadores (49 votos). Posteriormente, será encaminhada para análise pela Câmara dos Deputados.
A Lei de Drogas (11.343/2006) determina os delitos vinculados à posse e uso de substâncias entorpecentes, mas não especifica quantidade determinante para distinguir entre uso pessoal e tráfico de drogas. Víctor Quintiere, professor de Direito Penal do Centro Universitário de Brasília (CEUB) avalia possíveis desdobramentos jurídicos e impactos sociais a partir da aprovação da PEC.
Confira entrevista na íntegra:
Juridicamente, qual é a importância da distinção entre posse de drogas para consumo pessoal e tráfico de drogas na legislação brasileira, especialmente em termos de proteção dos direitos individuais e da equidade social?
VQ: É fundamental distinguir o usuário de entorpecentes, punido pelo artigo 28 da Lei de Drogas, e o traficante de entorpecentes, punido pelo artigo 33 da mesma lei. O traficante pode ser condenado a uma pena mínima de cinco anos e máxima de 15 anos de prisão. Em contraste, o usuário não enfrenta a prisão, mas sim medidas administrativas e tratamento. Houve até mesmo, ao longo da história, uma espécie de despenalização relacionada ao artigo 28. O que o Supremo Tribunal Federal está decidindo é se haverá descriminalização, se o uso de drogas deixará de ser considerado crime.
Como a ausência de critérios objetivos na legislação antidrogas pode afetar a aplicação da lei de forma desigual, especialmente em relação a questões de raça e classe social?
VQ: A falta de critérios objetivos dificulta a diferenciação entre usuário e traficante, levando até a prisões preventivas injustas de usuários encontrados em locais associados ao tráfico durante operações policiais. É fundamental que a legislação e o Poder Judiciário aprimorem os critérios e requisitos para aplicação da lei, pois os casos concretos não são simples, envolvem diversas nuances e complexidades que podem não ser visíveis à primeira vista. A lei menciona as circunstâncias, como a quantidade de entorpecentes e os detalhes da prisão, como critérios semelhantes aos adotados nos Estados Unidos.
Qual é a relevância de estabelecer critérios objetivos para diferenciar usuários de traficantes de drogas? Como isso pode contribuir para a justiça e equidade no sistema legal?
VQ: Estabelecer critérios objetivos é fundamental para promover equidade e justiça, evitando que usuários sejam injustamente detidos preventivamente. Isso é crucial, primeiro porque estamos lidando com um cenário de superlotação carcerária, problema reconhecido inclusive pela DPF 347 do Supremo Tribunal Federal. Em segundo lugar, mesmo que uma pessoa seja condenada ao final de um processo criminal por posse de drogas, enquadrada no artigo 28, ela não será sentenciada à prisão permanente. Portanto, manter alguém detido preventivamente por posse de entorpecentes é desproporcional e requer cautela.
Quais são os possíveis impactos jurídicos e sociais da descriminalização da posse exclusiva de maconha para consumo pessoal, como proposto pela maioria do STF até o momento?
VQ: A proposta da maioria do Supremo Tribunal Federal de descriminalizar a posse exclusiva de maconha para consumo pessoal pode levar a uma redução significativa no número de processos criminais. Isso, por sua vez, tornaria tanto o Poder Judiciário quanto as autoridades policiais mais eficientes em suas funções. Permitindo concentrar esforços na responsabilização de pessoas que cometeram crimes mais graves, protegendo assim os bens jurídicos que demandam tutela pela norma penal. Portanto, acredito que esse seja o principal impacto jurídico e social da descriminalização da posse exclusiva de maconha para uso pessoal.
Quais desafios jurídicos e práticos podem surgir na definição e aplicação de critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes de drogas?
VQ: O desafio jurídico e prático na definição e aplicação de critérios objetivos para distinguir usuários e traficantes de drogas é que frequentemente organizações criminosas tentam enganar o Estado brasileiro. Elas fazem isso fraudando operações de tráfico, disfarçando-as para parecerem estar em conformidade com esses critérios. Por exemplo, reduzindo a quantidade de entorpecentes transportados por meio de “mulas” e utilizando outras táticas. Lembrando que o Estado dispõe de um conjunto de leis que incluem técnicas especiais de investigação, como interceptação telefônica e infiltração de agentes, físicas e virtuais, conforme estabelecido pela Lei 9.296 e pela Lei 12.850 de 2013.
Como a decisão do STF em relação ao Recurso Extraordinário 635.659 pode impactar a abordagem do sistema de justiça criminal em relação ao tráfico de drogas e ao uso de drogas no Brasil?
VQ: No caso do julgamento do recurso extraordinário 635.059, se a decisão for pela descriminalização do uso de entorpecentes, especialmente maconha para consumo pessoal, isso representará um aprimoramento do sistema penal punitivo. O sistema deixaria de focar na punição de usuários, que na maioria das vezes necessitam de assistência médica e clínica, em vez de serem submetidos a medidas penais rigorosas. Muitas vezes, o vício é tão grave que a pessoa se torna semi ou até mesmo inimputável.