CLÁUDIA COLLUCCI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na primeira vez que Nayara engravidou, aos 20 anos, o médico que realizou o seu pré-natal em Brasília só falava com a avó, que resumia a conversa para neta. Surda desde o nascimento, ela conta que não tinha ideia de com o seriam a gestação e o parto.
“A bolsa estourou na 36ª semana. Não entendia o que estava acontecendo. Minha avó disse que eu precisava fazer uma cirurgia urgente. O obstetra não sabia Libras [Língua Brasileira de Sinais], não me disse nada. Apenas tirou o bebê da minha barriga”, conta ela, em entrevista por escrito.
Na segunda gravidez, já casada e morando em São Paulo, ela contratou uma intérprete de Libras para acompanhá-la nas consultas porque, de novo, não havia ninguém no consultório que se comunicasse com ela.
“A intérprete foi maravilhosa, eu não parava de perguntar, tinha muitas dúvidas, por exemplo, pra que servia o sulfato ferroso [suplemento que previne a anemia]. A médica ficou surpresa porque eu já tinha um filho. Mas eu disse que não sabia de nada, ninguém havia me explicado antes.”
No Natal de 2016, a bolsa estourou e Nayara foi levada às pressas pela família do marido a um hospital particular. O que ela mais temia aconteceu novamente.
“Ninguém falava comigo. Fui levada para a sala de cirurgia e vi uma enfermeira rindo de mim porque eu estava com muito pelo [pubiano]. O ar-condicionado estava muito forte no meu rosto, tentei falar com elas para reduzir, mas ninguém me entendia. Tentei gritar, amarraram as minhas mãos.”
No quarto, ela conta que o drama continuou. “Eu chorava muito, me sentia num circo. As enfermeiras e outras mães ficavam olhando pela porta. Tipo: ‘olha uma mãe surda que acabou de partir um filho'”, relembra.
Aos 31 anos e mãe de Miguel, 11, e Noah, 5, ela diz que não quer engravidar novamente por medo de enfrentar o que hoje define como violência obstétrica. “Eu queria ter tido um parto humanizado, em um hospital que oferecesse um intérprete em Libras ou um médico que sabe Libras ou mesmo algum outro tipo de comunicação. Isso quase não existe.”
Nayara tem razão. Menos de 8% das maternidades públicas brasileiras estão adaptadas para atender gestantes e puérperas com deficiências motoras e auditivas. Para as que têm deficiência visual, a situação é ainda mais dramática: nenhuma está totalmente preparada.
O diagnóstico da falta de acessibilidade vem de um levantamento inédito feito em 606 maternidades públicas brasileiras pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e pela Universidade Federal do Maranhão.
Apenas 4,3% (26) das instituições são acessíveis a pessoas com deficiência motora e têm, por exemplo, corrimões, banheiros com barras e portas com dimensões para cadeiras de rodas.
Só 3,3% possuem sinalização auditiva com textos, figuras, placas, cartazes ou símbolos para mulheres com deficiência auditiva. Como o estudo só avaliou a estrutura física, não há dados, por exemplo, sobre o percentual de funcionários treinados em braile.
E nenhuma tem sinalização tátil. Só foram consideradas adequadas aquelas que tivessem indicadores essenciais de acessibilidade na recepção, sala de admissão e unidade obstétrica.
O estudo faz parte de um levantamento maior que avaliou a qualidade da assistência obstétrica no país em maternidades públicas das cindo regiões ligadas à Rede Cegonha, estratégia do Ministério da Saúde criada em 2011 com o intuito de melhorar a assistência às mulheres na gestação, no parto e no puerpério. O trabalho foi publicado no periódico Ciência & Saúde Coletiva.
Em uma live de apresentação do trabalho, Antônio Rodrigues Braga Neto, diretor do departamento de ações programáticas estratégicas do Ministério da Saúde, reconheceu que há muitos desafios na atenção ao pré-natal e ao parto e que a pasta investiu mais de R$ 1 bilhão, em nove meses, na saúde materno-infantil, com recursos, inclusive, para reaparelhar os espaços das maternidades.
“Os nossos resultados são assustadores. As maternidades estão totalmente despreparadas para receber essas mulheres”, diz a epidemiologista Erika Thomaz, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Maranhão, autora principal do estudo.
As maternidades do Norte e do Nordeste foram as com piores índices de acessibilidade para as deficiências motoras, com 2,3% e 2,6%, respectivamente. As regiões Sul (3,7%) Sudeste (5,4%) e Centro-Oeste (9,8%) tiveram, em geral, melhores resultados, mas não atingiram proporções mínimas em vários dos critérios estruturais estudados.
Segundo Thomaz, é grande o desafio porque muitas das adaptações requerem reformas estruturais dos prédios e não há recursos. “Muitas maternidades funcionam em prédios antigos, em unidades que já existiam antes das atuais políticas de acessibilidade. E, infelizmente, as nossas autoridades não têm dado atenção para isso”, afirma.
Problemas semelhantes já foram relatados em unidades básicas de saúde. Uma análise de 240 UBS em 41 municípios brasileiros verificou que cerca de 60% das unidades eram inadequadas.
No Brasil, há 17,3 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, segundo dados do IBGE. Dessas, 10,5 milhões são mulheres.
Thomaz diz que outros direitos dessas mulheres, garantidos por lei, como a comunicação com a equipe médica, também estão sendo violados.
“Os médicos não têm formação para isso, raramente têm alguma informação na língua de sinais. A comunicação acaba acontecendo com o acompanhante.” Mas, às vezes, também esse direito não é respeitado.
Em junho deste ano, o soldado Walker Sousa, do Corpo de Bombeiros de Ribeirão Preto (SP), serviu de intérprete, em pleno trabalho de parto, para que a equipe médica pudesse se comunicar uma gestante surda por meio de uma videochamada. “Não tinha ninguém no hospital que tinha conhecimento em Libras”, contou.
A gestante estava muito nervosa, mas logo se acalmou quando conseguiu se comunicar com o bombeiro.
Mulheres com necessidade especiais têm maior risco de apresentar problemas relacionados à gestação, parto e pós-parto em comparação com a população geral, como taxas mais altas de depressão, diabetes e infecções urinárias e de parto prematuro
“Muitas vezes, a deficiência não é o único problema de saúde, ela tem sequelas de outras comorbidades, um acúmulo de riscos para elas e para o bebê, que pode nascer com baixo peso, por exemplo”, diz Thomaz.
“A área da saúde não é preparada para atender pessoas. Que dirá pessoas com deficiências”, diz a consultora de inclusão de profissionais com deficiência Tabata Contri, que perdeu os movimentos da perna após um grave acidente de trânsito no Réveillon de 2000 para 2001.
Mãe de Francisco, 5, ela afirma que há barreiras de acesso em todos os níveis para as mulheres deficientes. “Se eu vou ao ginecologista, não encontro banheiro acessível caso queira fazer xixi antes da consulta, se vou fazer papanicolau, tenho que esvaziar a bexiga antes em casa porque uso sonda.”
Quando vai fazer exames, nem sempre há vagas para deficientes no estacionamento e os guichês são altos.
“No primeiro ultrassom na gravidez que fui fazer, para escutar o coraçãozinho do meu filho, naquele dia o único elevador estava quebrado. Meu marido me carregou para o andar de cima. Se eu estivesse sozinha, teria que ter ido embora.”
Segundo Contri, muitas mulheres deixam de fazer seus exames preventivos porque se depararam com a falta de acessibilidade ou de sensibilidade na área da saúde.
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