Só quem morou no ontem e descansa hoje numa rede costurada em lembranças, compreenderá da importância do armazém de secos e molhados, o avô dos supermercados atuais, ou o supermercado caipira em relação aos atuais.
Nele se encontrava de um tudo, desde alimentos dos mais variados, ferramentas para o que se necessitasse e até remédio contra bicheira dispostos ao olho do freguês ora em prateleiras, ora em sacos pelo chão, junto à balança.
O contato entre proprietários e clientes era direto, uma quase família, com direito a cadernetas de fiado cujas anotações, ou eram liquidadas mês a mês quando dependente de salário, ou de safra em safra quando da lavoura vivia o devedor. Havia também os casos de “- bota no prego, que logo virei pagar,” para casos emergentes, e não se falava em juros nem em sobrepreço se houvesse atraso, ou quebra de safra. Havia consciência entre o vendeiro e o consumidor.
O armazém era uma quase extensão do lar, quer pelas mulheres nas compras de tecidos, pães, leite e o necessário, quer para os homens que nos fins de tarde se juntavam para a limpeza de goela em conversas sobre política, religião, futebol ao balcão de bebidas e, quando não, partidas de truco até a hora do banho e jantar.
No geral, ali se vendia o mesmo que o supermercado atual, mas, e principalmente, sem as gôndolas e corredores sem alma desse. Os produtos eram emprateleirados, enquanto os de venda a granel dispostos em sacos no estado bruto, a serem partilhados em pequenas quantidades. Mais: havia duas reservas de espaço: a sagrada padaria para o leite vendido a conchas e o pão que poderia ser o trançado, o caseiro ou o doce coberto de generosa camada de açúcar, e o reservado aos homens, com bebidas servidas no balcão entre fernetes, conhaques, pingas, cervejas refrescadas em areia molhada, e até água.
Qualquer de nós, se puxar pelo passado, vai se lembrar que não havia a preocupação com a vigilância por furto ou roubo, e nem a intenção de burla, hábito diferente do tratamento de hoje quando somos vigiados por olhos humanos e câmeras campeadoras a nos perseguirem, desde a entrada no pátio até o deixarmos, na saída.
Mudaram-se os costumes, as necessidades, as relações sociais, o calor humano e, por consequência, as nossas ações que se tornaram insípidas e autônomas, e todos nos adaptamos a essa bruta e fria realidade entre pôr à mostra mercadorias, e o ato de comprá-la.
Daquelas cadernetas de crédito tão úteis, respeitadas e conservadas entre devedor e credor, vivemos sob o domínio de cartões de plástico que nos confere pseudo crédito a juros abjetos. São como serpentes à mercê de descontroles emocionais e financeiros a esconderem o ferrão, esse sempre atento ao pequeno atraso. Esses cartões não têm rosto, nem os mercadistas quando nos levam à indução pelas propagandas caras, para dizer que, se não cuidarmos de manter deles distância e zelo extremos, tomarão sob expropriação até nossas cuecas e levarão à penhora nossa alma até sua raiz, caso dela alguma coisa tenha restado.