O projeto de todos os carmelitas é caminhar nas pegadas de Jesus. Mas nossa compreensão de Jesus muda, assim como muda a situação histórica. E a mudança da situação histórica apresenta novos desafios ao nosso caminhar nas pegadas de Jesus. Portanto, para rearticular a espiritualidade cristocêntrica da Regra de Alberto devemos levar em conta tanto nossa compreensão contemporânea do Jesus histórico quanto nossa situação contemporânea. Por isso, antes de tentar uma rearticulação, necessitamos de uma palavra sobre a atual situação dos países desenvolvidos do Primeiro Mundo.
O filósofo jesuíta John F. Kavanaugh interpreta e analisa nossa situação contemporânea empregando o modelo heurístico inspirado em Marx do “Modo de Produção”. O modo de produção mercantilista é um paradigma para a vida humana. É uma maneira de visualizarmos a nós mesmos e aos outros como coisas ou mercadorias e viver de acordo com isso. As coisas substituem as pessoas. Relacionamentos materiais com as coisas substituem os verdadeiros relacionamentos humanos. A mercadoria se torna um deus, que obriga os seres humanos a cultivarem as coisas e a se relacionarem com elas como se fossem pessoas e a se relacionarem com as pessoas como se fossem objetos. O resultado é que as pessoas são possuídas pelo que possuem e são produzidas por seus produtos. Assim, alienam-se de si mesmas e se transformam na própria mercadoria.[i] Existe até uma mercantilização do saber. O saber é reduzido ao saber técnico, científico, instrumental, “coisificado”. Esse modo de produção com seus valores preeminentes de comercialização e consumo se torna então uma patologia, contra a qual as pessoas se autoavaliam em termos de produtividade e de utilidade. O resultado é que não há mais um valor humano intrínseco.
Em consequência desta mercantilização apontada como valor fundamental de nossa sociedade, surge uma ética de produção centrada num agressivo individualismo moral, que resulta em violência, dominação, manipulação, medo, alienação, racismo, chauvinismo, hedonismo, abuso sexual, aborto, eutanásia, consumo excessivo e desintegração da vida familiar.
Além do modo de produção mercantilista, existe um outro paradigma da existência humana. É o “modo interpessoal”, que é “um modo de perceber e de avaliar homens e mulheres como pessoas insubstituíveis, cujas identidades fundamentais se realizam em relacionamentos de alianças”. O modo interpessoal promove o valor intrínseco das pessoas: respeito, liberdade, desapego, autodoação, generosidade, justiça, paz, perdão, cura, compaixão, capacitação e a valorização dos que são os menores.[ii] Estes dois modos, o de mercantilização e o interpessoal, são antagônicos em todos os relacionamentos. E, por isso, Cristo e o Evangelho já que nos revelam mais plenamente o modo interpessoal, entram em radical conflito, subvertendo nossa sociedade contemporânea e o seu modo de produção. Seguir a Cristo é, necessariamente, viver a contracultura.
Como vimos anteriormente, foi a espiritualidade da cruzada que ajudou a definir o obsequium Jesu Christi dos primeiros eremitas carmelitanos, com o intuito de imitar a própria batalha espiritual de Jesus através da pobreza, da penitência, da solidão, do silêncio, da obediência e da oração. Caminhar nas pegadas de Jesus não era meramente um empreendimento “espiritual”. Tinha também conotações “políticas”, pois seu propósito era reconquistar a terra de Cristo. Apesar de estarem envolvidos em combate espiritual, os primeiros eremitas estavam muito comprometidos com a terra de Cristo, o seu feudo. Eram, portanto, verdadeiramente cidadãos deste mundo. Como vassalos de Cristo, tinham solidariedade e responsabilidade pela terra e por seu povo.
Não é necessário dizer que as cruzadas terminaram e que reconquistar a terra física de Cristo não é prioridade. Mas para os carmelitas, caminhar nas pegadas de Jesus permanece uma prioridade.
(tirado do texto da Ordem carmelitana: O Cristocentrismo do Carisma Carmelitano de Donald Buggert O.Carm.