*André Ricardo Franco
O famoso consultório do Dr. Thomas estava em silêncio. A tarde se deitava preguiçosa pela janela entreaberta, espalhando um dourado caloroso sobre o chão de madeira. O relógio marcava 14h, mas parecia mais — o tempo tinha dessas coisas ali, dentro daquele espaço onde sempre se buscava palavras que curam.
Foi então que ele chegou. Passos tranquilos, mas firmes. Um senhor de cabelos prateados já entregues ao tempo, olhos de quem viu e viveu muita coisa — e guardou quase tudo na memória, no coração. Trazia consigo uma pasta de couro surrada pelo tempo e uma expressão entre o orgulho e a emoção.
— Dr. Thomas… hoje eu não vim por tristeza, buscando amparo. Vim por memória, aquela que satisfaz.
Dr. Thomas abriu um sorriso. Era raro alguém entrar assim, com a alma leve e transbordando alegria.
— Memória também precisa de espaço, meu amigo. Sente-se. Me conte o que tanto lhe enriquece.
Ele se acomodou na poltrona como quem reencontra um velho conhecido. Tirou da pasta um jornal dobrado com cuidado de relíquia. Entregou-me como quem entrega um pedaço de história.
— É a edição 19.900 do Diário do Noroeste. Setenta anos. Sete décadas contando a vida por aqui, nosso cotidiano, angústias e alegrias.
Segurei aquele exemplar como se fosse um retrato de família, desses que a gente guarda com cuidado e reverência. Ali, entre as minhas mãos, repousava um fragmento da vida de milhares de pessoas que, em algum momento, estamparam manchetes ou circularam pelas notícias e páginas sociais do jornal. O nome na capa brilhava com uma mistura de orgulho e afeto: Diário do Noroeste. Fundado em 23 de outubro de 1955 por Euclides Bogoni — jornalista, poeta, um verdadeiro homem de palavra, no sentido mais nobre e bonito que essa expressão pode carregar.
— Começou tímido, sabia? — disse ele, com um brilho nos olhos. — Primeiro mensal. Depois quinzenal, semanal… até virar diário. Como a própria vida: de passo em passo, até encontrar seu ritmo.
Balancei a cabeça em silêncio, assentindo com seu relato. Havia algo sagrado nele. Ele continuou:
— Contou coisas que o tempo não pode apagar. A geada preta de 75, por exemplo. Acabou com os cafezais — e com eles, o sustento de tanta gente. Mas o jornal estava lá, firme. Noticiando, acolhendo, registrando.
Fez uma pausa. Olhou para baixo, meio que emocionado pelas lembranças.
— No mesmo ano, veio o incêndio. Tudo virou cinza: o prédio, as máquinas, os arquivos… Mas o queimar das coisas não apagou a vontade de continuar firme em seu propósito. Isso me emociona, doutor. O papel queimou, mas a alma do jornal ficou juntamente com o espírito guerreiro de seu idealizador.
Senti um nó na garganta. Porque há coisas que sobrevivem até mesmo ao fogo. E há nomes — como o de Euclides Bogoni — que mesmo depois de partirem, como ele em 2016, continuam ecoando nas entrelinhas e nunca serão retiradas das memórias.
— Em 2019, ele se reinventou de novo. Passou a fazer parte do Grupo Carvalho, família tradicional local. Com visão moderna, trouxe tecnologia, redes sociais, internet… Mas sem nunca abandonar o formato impresso. Porque o cheiro da tinta, o toque do papel, ainda têm seu lugar no mundo.
Dr. Thomas sorriu com respeito.
— Porque a leitura, meu amigo, é mais do que um hábito. É abrigo. Um jornal como esse é espelho da cidade, a materialização do tempo, da vida. É onde a gente se vê. É onde a história respira!
Novamente Dr. Thomas assentiu devagar, como quem ouve uma verdade conhecida.
— Setenta anos, doutor. E contando. Na quinta já vem a edição 19.901. E depois, a 19.902. Porque enquanto tiver alguém pra escrever… e alguém pra ler… a roda da memória continua girando.
Levantou-se com serenidade. Antes de sair, olhou para trás e disse:
— Sabe, às vezes acho que jornal bom é como terapeuta: escuta, acolhe e ajuda a gente a entender o mundo.
Fiquei ali, com o jornal no colo, o coração cheio e a certeza de que algumas palavras — quando impressas com amor — duram mais do que o tempo.
































