A partir da análise anterior da situação contemporânea em termos de modo de produção e a partir do esboço anterior do Jesus histórico, como vamos rearticular hoje nosso “caminhar nas pegadas de Jesus Cristo”? Ofereço três sugestões:
Primeira sugestão: não nos serve qualquer Jesus. Em nosso caminhar nas pegadas de Jesus, que Jesus seguimos? Não é qualquer Jesus que é conciliável com o Jesus histórico e sua prática. Jesus tem sido usado, abusado e manipulado, tornando-se um apoio ideológico para o status quo. Ele tem sido invocado, e até recebe orações, para manter o oprimido na opressão, os opressores no poder, os “ricos” em suas riquezas e os que “não têm” em sua pobreza. Se Bultmann “desmitologizou” Jesus, devemos “despacificar” Jesus, para que ele não seja conivente com os ídolos, como a mercantilização, e para que ele não mantenha esta realidade em paz.
Devemos nos perguntar: o que teria a dizer um Jesus “despacificado” sobre a tremenda desigualdade na distribuição e no uso dos bens da terra entre ricos e pobres, nações ricas e pobres, sobre a escravidão, injustiça, desumanização e pilhagem ecológica que resulta dessa distribuição desigual? O que teria a dizer o Jesus “despacificado” sobre a opressão e a marginalização das mulheres ou de qualquer minoria? Não aceitar Jesus e sua prática libertadora, como se ele não tivesse nada a dizer sobre essas questões, é na verdade apresentar um Jesus celestial e escatologizado, desprovido de significado para a história, para nossa salvação aqui e agora. É reduzir o reino de Deus a uma realidade exclusivamente escatológica.
Sobrino nos adverte corretamente sobre o risco de uma cristologia apenas de “Páscoa”, onde a vida e a cruz de Jesus são deixadas para trás, apresentando um Cristo exaltado que está acima de tudo e é indiferente às injustiças deste mundo. Tal cristologia leva facilmente à privatização, espiritualização e escatologização da fé e da vida cristã. Ela nos anestesia para a realidade conflitual e pecadora deste mundo e para o poder do “satânico” manifestado nele.
Qualquer seguimento de Cristo que nos anestesie da história e de seus conflitos é, na melhor das hipóteses, uma espiritualidade fuga mundi, que nega a própria história encarnacional de Deus. Em Jesus, Deus assumiu para si mesmo nossa história, precisamente para curá-la e realizá-la. Na pior das hipóteses, tal espiritualidade anestesiadora direcionada para a “vida interior” da pessoa, negligenciando a criação e a história, é uma gnosticização ou platonização do cristianismo. Um cristianismo supostamente mágico, um vodu, que tenta manipular o divino e escapar dos compromissos e dos esforços dolorosos, algumas vezes, “arriscando a própria vida”, mas necessários para tornar o Reino de Deus mais uma realidade em nosso mundo.
Segunda sugestão: caminhar nas pegadas de Jesus significa assumir a prática de Jesus na construção do Reino de Deus. Ainda existe uma terra de Cristo com um povo a ser resgatado. Mas essa terra com seu povo não está limitada ao espaço geográfico de Cristo. Jesus queria muito mais que isso. Jesus queria a inauguração do Reino de Deus agora e na história. Um Reino de Deus que envolveria e transformaria toda criação e toda história. Um Reino que agora mesmo, na história, começaria a vencer o Reino de Satã e todas as suas consequências: injustiça, violência, guerra, opressão, dominação. Um Reino que restauraria todo o estado paradisíaco. A partir da perspectiva da proclamação do Reino de Deus e da prática de Jesus, a terra e o povo de Jesus significam toda a criação e toda a história, especialmente a dos marginalizados, das vítimas da opressão e da injustiça, os menores dos irmãos e das irmãs.
Por isso, o obsequium da Regra exige hoje compromisso com a terra, com o aqui e agora da história, com todos os seus obscuros e pecaminosos conflitos. No contexto das nações desenvolvidas e industrializadas do Primeiro Mundo, esta inserção na história, este compromisso com a terra, concretizar-se pela denúncia profética da mercantilização e do anúncio do modo interpessoal. O ídolo do modo de produção mercantilista, com sua redução da pessoa a “algo” consumível, e da experiência humana ao que pode ser quantificado com seus valores escravizantes de produção e de consumo, com sua ética de individualismo desigual e suas consequências de violência, dominação, manipulação, alienação, racismo, chauvinismo, abuso sexual, aborto e dissolução da vida familiar, tornou-se o novo Satã, o novo adversário que espreita como um leão rugidor em busca daqueles a quem pode devorar. Assumir hoje o anúncio do Reino de Deus através da prática de Jesus significa entrar numa batalha contra esse leão rugidor do modo de produção, ficar ao lado do valor intrínseco das pessoas: liberdade, desapego, generosidade, justiça, paz, perdão, cura, compaixão e o fortalecimento daqueles que são os últimos.
(tirado do texto da Ordem carmelitana: O Cristocentrismo do Carisma Carmelitano de Donal Buggert O.Carm.