JOÃO BATISTA NELI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A palavra Leviatã significa muitas coisas importantes ao mesmo tempo.
É um livro de 1651, inspirado em personagem bíblico, do filósofo inglês Thomas Hobbes, que alerta para o perigo da autofagia social em países desprovidos de um governo eficiente e com regras claras de convivência. E é também o nome de um grande filme russo de 2014, que retrata a desintegração de uma sociedade de valores muito elásticos, aliás governada por Vladimir Putin.
Como toda boa obra de ficção, o longa-metragem dirigido por Andrei Zviaguintsev dá margem a muitas interpretações. Acontece que uma polêmica na época da estreia entre o ministro russo da Defesa e o produtor Alexander Rodnianski -que, aliás, é ucraniano- deixou claro que a ideia era falar mal do país no Exterior.
O filme, diz o produtor, “lida com as questões sociais mais importantes da Rússia contemporânea e nunca se torna um sermão de um artista ou uma declaração pública; é uma história de amor e tragédia vivida por pessoas comuns”. Ou seja, uma leitura dessas questões sociais é mais que recomendável.
A ação se passa numa cidadezinha fictícia do mar de Barents, esse pedacinho pouco atraente de mundo que é dividido pela Rússia e pela Noruega no oceano Glacial Ártico. É uma região em que as árvores não crescem -o frio não deixa- e nem com muita boa vontade alguém enxergaria um cenário natural de beleza.
Pois é lá que moram Nikolai Kolia Sergueiev, um mecânico de automóveis loiro, obeso e com seus 40 anos, sua mulher Lilia e um filho adolescente e malcriado, Roma.
A camada mais leve e superficial do enredo opõe Kolia a um homem mau, o prefeito da cidade cujo nome é Vadim e que deseja desapropriar a casa e a oficina do mecânico por um preço propositalmente baixo. Kolia pede a ajuda de um amigo da juventude, o bonitão advogado Dima, com escritório em Moscou.
Mas as coisas começam a se complicar por todos os flancos. O Judiciário é podre. Rejeita sem motivo os recursos pelos quais Kolia procura obter uma indenização mais justa. Um diálogo entre o advogado e o juiz retrata com simplicidade a degradação ética à qual essa Rússia, ao mesmo tempo verdadeira e ficcional, chegou ao descer a ladeira do pós-comunismo. No tribunal, bem atrás do juiz, lá está a fotografia oficial de Putin.
A complicação prossegue quando o advogado se torna amante de Lilia, a mulher do mecânico. A impressão de que o conjunto de personagens não está bem dentro da própria pele transparece pelo fato de quase todos consumirem quantidades literalmente garrafais de vodca. É um jeito de escapar à realidade.
Uma pergunta que se pode fazer diz respeito à dimensão política do adultério. Em nenhum momento Lilia demonstrou carinho pelo amigo de juventude do marido. Mas tampouco era carinhosa por Kolia; entre os dois paira uma falta de cumplicidade e muita frieza. A politização do adultério se dá quando a imagem desse marido meio perdido se esvazia de consistência moral e erótica. Ele é um coitado.
É a percepção desse fato que leva a esposa a se despir diante de Dima, um homem bem-sucedido, no quarto do hotel modesto em que ele está hospedado. A política e o sexo têm, portanto, muitas conexões possíveis. A mulher do mecânico se torna adúltera ao perceber o quanto o marido era ainda um bêbado sem graça.
Kolia descobre a infidelidade da mulher durante um piquenique. Dá nela uma boa surra e rompe com o amigo. Mas estamos apenas no comecinho de um cenário que vai piorar um bocado. Lilia desaparece por três dias, e os amigos acreditam que ela fugiu com o amante para Moscou. No quarto dia o corpo aparece numa praia deserta.
O mecânico está embriagado e é preso sob a suspeita de um crime que provavelmente não cometeu. Ele é condenado a 15 anos de prisão, em julgamento em que não cabe recurso. Roma, seu filho, é adotado por um casal de amigos, a quem o garoto pergunta se a adoção acontece “por dinheiro”. Não, Andrei Zviaguintsev, acontece por generosidade que ele não consegue enxergar.
O filme acaba com guindastes demolindo a casa e a oficina. Já é outono. Com a chegada do inverno, os escombros se confundem com a neve abundante do mar de Barents.
Para o lado mundano e menos relevante, “Leviatã” concorreu ao Oscar de melhor filme internacional e ganhou a Palma de Ouro, em Cannes, por melhor roteiro.
LEVIATÃ
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Elenco Alexei Serebriakov, Roman Madianov e Vladimir Vdovichenkov
Produção Rússia, 2014
Direção Andrei Zviaguintsev