Boris Johnson, o primeiro-ministro do Reino Unido que ascendeu ao poder por meio de uma imagem de bufão, com os cabelos organizadamente desorganizados e gravatas tortas, renunciou nesta quinta (7). Em meio a uma avalanche de crises e abandonado por aliados, ele ainda tenta permanecer no cargo até que um novo líder do Partido Conservador seja escolhido –o que deve acontecer nos próximos meses–, mas a possibilidade é rechaçada pela oposição trabalhistas e por alguns membros de sua legenda.
Críticos haviam especulado que a derrocada aconteceria antes, mas, resistente, Boris sobreviveu a uma série de crises, e a saída agora se deve menos a um caso específico, mas ao acúmulo das controvérsias. Do negacionismo diante do surgimento da Covid à descoberta de que sabia e nada fez para tirar um hoje acusado de assédio sexual da tarefa de garantir a disciplina parlamentar de seu partido, o ex-premiê deixa o cargo impopular e constrangido por aliados, como a debandada em série de seu governo mostra.
Nos últimos dias, dois secretários de peso, Rishi Sunak e Sajid Javid, das Finanças e de Saúde, puxaram a fila de renúncias, seguida por mais de 50 membros de sua gestão. A pressão cresceu na quarta (6), quando um grupo de pessoas próximas a ele, entre as quais outros ministros, foi até Downing Street para pedir que Boris enfim cedesse, encerrando um período de quase três anos à frente do Reino Unido.
Eleito para entregar o brexit, a separação dos britânicos da União Europeia, o conservador cumpriu a promessa. Também foi o primeiro líder no mundo a entregar vacinas contra o coronavírus à população, numa virada que chegou a apagar os trancos iniciais, quando demorou a decretar lockdown e outras restrições, levando o país a ser um dos mais atingidos pela pandemia no continente.
Mas, de todos os rótulos, o que mais grudou foi o de mentiroso. O “partygate”, episódio no qual vazamentos em série revelaram festas na sede do governo num momento da Covid em que os ingleses estavam proibidos de se reunir em ambientes fechados, deixou explícita a maior crítica feita pela oposição e até por membros de seu partido, a de que negava fatos que sempre se revelavam verdadeiros.
Foram dezenas de comemorações, de festa de Natal a festa de aniversário –do próprio premiê. Funcionários do gabinete chegaram a realizar um convescote na véspera do funeral do príncipe Philip (1921-2021), o que depois gerou um pedido de desculpas de Boris à rainha Elizabeth 2ª. A fritura também abrigou uma reforma feita na residência oficial por meio de doação privada não declarada e até a acusação de que, durante a retirada do Afeganistão, após a retomada do poder pelos extremistas do Talibã, seu governo priorizou o transporte de cães e gatos em vez do de civis, polêmicas que passaram a ser acompanhadas de derrotas eleitorais em redutos tradicionalmente conservadores.
Pouco mais de um mês atrás, Boris escapou de um voto de desconfiança. Precisava do apoio de 180 dos 359 parlamentares de sua sigla –obteve 211 votos, mas viu 148 correligionários se posicionarem contra ele, prenunciando uma vitória de Pirro. Em tese, a conquista garantiria um ano sem que ninguém pudesse acionar o mecanismo para derrubá-lo outra vez, mas bastou uma nova crise para que especulassem uma revisão das regras. Só a ameaça de uma nova votação acabou impulsionando a renúncia.
No plano doméstico, Boris renuncia no momento em que ventos independentistas voltam a soprar da Escócia e com o Protocolo da Irlanda, fruto do divórcio entre UE e Reino Unido, ainda a resolver. O resultado da contenda em torno do mecanismo para evitar um “fronteira dura” entre as Irlandas pode azedar de vez a relação do Reino Unido com o bloco europeu, sinal de que o brexit deixou cicatrizes.
Em meio a tantas questões e escândalos, por muito tempo Boris foi visto como um sobrevivente. Em seu governo, foi de fato um. Chegou a ir para a UTI após ser contaminado pela Covid. Depois, permaneceu no poder até quando todos já davam a derrota como certa. Ficou mais do que os críticos imaginavam e menos do que o seu alter ego no romance que escreveu, “Seventy Two Virgins”, conseguiu. Na obra, o personagem triunfa ao tentar ofuscar as más notícias que o aguardava. Para Boris, não deu.
FolhaPress