JULIO WIZIACK
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Para aprovar o projeto de lei que impõe regras ao mercado de criptoativos, o Banco Central abriu mão de um dispositivo da proposta que blindava o patrimônio dos investidores.
A chamada segregação patrimonial era um dos pontos defendidos pelo presidente do BC, Roberto Campos Netto, para igualar as regras desse novo mercado às do sistema financeiro e assim barrar o uso das criptos em lavagem de dinheiro e fraudes -principalmente por meio de moedas como o bitcoin e o ethereum.
Hoje, boa parte das corretoras de criptos misturam o dinheiro do investidor com o da empresa. Em casos de falência ou de qualquer irregularidade, fica mais difícil recuperar o dinheiro do cliente.
Foi o que ocorreu nesta semana quando, por uma decisão judicial, a Capitual teve R$ 480 milhões bloqueados devido a uma disputa com sua ex-parceira, a gigante Binance.
O dinheiro pertencia aos clientes da Binance, que tinha contratado a Capitual para fazer conversão de moedas (criptomoedas e moedas convencionais).
Segundo relatos, com o bloqueio, a Binance teve de ressarcir os valores com recursos próprios, enquanto aguarda a devolução pela Capitual.
O BC queria separar os recursos dos investimentos dos do caixa das corretoras, mas a medida enfrenta resistência na Câmara.
Segundo pessoas que participam das discussões, o relator do projeto, deputado Expedito Netto (PSD-RO), disse ao BC que preferia deixar o texto mais “aberto”, deixando para a regulamentação do projeto os detalhes “mais técnicos”. A segregação patrimonial seria um desses pontos.
O texto anterior, aprovado pelo Senado, previa a segregação, mas não impunha essa separação patrimonial para todo o mercado.
O parecer final da Câmara, que pode ser votado nesta semana, exclui a segregação com o argumento de que seria um processo de difícil implementação pelos custos envolvidos -o que deixaria o mercado concentrado em grandes empresas.
No entanto, o mercado -embora diversificado em número de corretoras- já é altamente concentrado. Mais de 52% do volume mensal de compra e venda de criptomoedas é feito pela Binance, líder global.
Outra incongruência: as empresas que detêm participação menor de mercado também não se opõem à segregação. Elas avaliam que, com a regra, corretoras que hoje operam no “escuro”, acobertando clientes com risco de lavagem de dinheiro ou fraudes, teriam de se enquadrar.
Mesmo assim, representantes do BC junto ao Congresso avaliaram haver risco de o projeto não ser votado caso houvesse a restrição.
O acordo realizado foi jogar o assunto para a regulamentação da lei. Após a aprovação do projeto, o presidente Jair Bolsonaro deve editar um decreto transferindo o poder de regulação da lei para o Banco Central. O órgão regulador, assim, definiria a segregação como medida para o mercado.
Na avaliação de algumas empresas de criptomoedas, a regra em discussão trata ativos digitais como recurso financeiro, o que seria incorreto, pois na plataforma de negociação, o ativo não fica na corretora. A empresa só serve de plataforma de compra e venda. Os títulos (códigos protegidos) ficam com os negociadores. No entanto, outras empresas, como a brasileira Mercado Bitcoin, se posicionaram a favor da cláusula.
Já a Binance pediu mudanças na regra, considerada ampla demais. Embora também considere que os ativos digitais não precisem ser segregados, já que não ficam no caixa da empresa, a gigante não se opôs ao texto, segundo relatos de parlamentares.
Nas negociações do parecer, o relator também decidiu desobrigar as empresas a informarem todo tipo de transação acima de R$ 10 mil ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). A exigência consta no texto aprovado no Senado a fim de que esse setor opere com as mesmas regras do mercado financeiro tradicional.
Nesse caso, as empresas continuariam com a obrigação definida pela Receita Federal de informar apenas operações superiores a R$ 35 mil.
Essa é outra regra que o BC decidiu modificar via regulamentação.
Há riscos, porém, na estratégia do BC de jogar os dois temas para a regulamentação. Caso o presidente Jair Bolsonaro (PL) sucumba à pressão das empresas que querem uma regulação mais frouxa, a regulamentação poderia ser delegada a outro órgão que não o BC.
Em seu relatório, o deputado ainda acatou pedido de gigantes do setor para que, uma vez aprovada, a nova lei só entre em vigor após seis meses. A versão aprovada pelo Senado previa aplicação imediata.
Empresas de menor porte afirmam que esse prazo dará mais tempo ainda para que companhias, algumas envolvidas em investigações policiais, continuem operando sem regras.
Juntos, os recursos movimentados no país pelas corretoras de criptos já representam cerca de R$ 300 bilhões, segundo dados do BC de dezembro do ano passado.
Para se ter uma ideia da dimensão dessas operações, as negociações de renda variável feitas na B3 (ações, fundos, BDRs e ETFs) totalizaram cerca de R$ 600 bilhões no mesmo período, segundo dados da Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais) reunidos pelo BC.
A quantia movimentada pelas aplicações digitais já representa 27% dos recursos hoje depositados na caderneta de poupança. No ano passado, somente a Binance movimentou R$ 40 bilhões no Brasil.
O crescimento exponencial desse mercado nos últimos três anos, sem qualquer tipo de regulação e controle, disparou o temor do BC e da Receita de evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
Em julho de 2021, por exemplo, a Polícia Federal deflagrou a Operação Daemon, que mirou Cláudio José de Oliveira. Ele teria desviado R$ 1,5 bilhão de 7.000 clientes, segundo dados do Coaf e da PF.
Um mês depois, a operação Kryptos avançou sobre o esquema de fraude com pirâmide financeira capitaneado pelo empresário Glaidson Acácio dos Santos, conhecido como “faraó do bitcoin” e que acumulou mais de 67 mil clientes em quase cinco anos de operação.
Por meio de sua assessoria, o BC disse que não iria comentar as negociações sobre o projeto de lei. O deputado Expedito Netto não respondeu aos questionamentos da reportagem até a publicação desse texto.
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