CRISTIANE GERCINA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Principal aposta do governo federal nas eleições deste ano, o Auxílio Brasil de R$ 600 ainda nem foi pago, mas já chegará defasado para as cerca de 20 milhões de famílias em situação de pobreza que devem receber o benefício.
O acréscimo de R$ 200 liberado de forma temporária de agosto a setembro -o benefício original é de R$ 400- não deve trazer de volta ao carrinho itens básicos que deixaram de ser consumidos, como carne, leite e seus derivados, entre outros.
O benefício extra não comprará o mesmo que o brasileiro comprava em 2020, quando o auxílio emergencial de R$ 600 foi pago por causa da pandemia de coronavírus e elevou a aprovação do governo Bolsonaro. Naquele ano, com R$ 200 no supermercado, o consumidor levava para casa 18 itens, incluindo arroz, feijão, carne, leite, ovos, queijo mozarela, macarrão, bolacha e alguns legumes.
Neste ano, os mesmos itens custam mais de R$ 300, segundo a cesta básica do Procon-SP (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor) e do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). Hoje, o carinho vem mais vazio, sem carne de primeira e a mozarela, que têm subido com a disparada do leite.
Os R$ 200 de 2020 representam atualmente R$ 163,91, segundo cálculos de Matheus Peçanha, pesquisador e economista do Ibre (Instituto de Brasileiro de Economia), da FGV (Fundação Getulio Vargas), feitos a pedido do jornal Folha de S.Paulo. Já os R$ 600 equivalem a R$ 491,72.
Para ter o mesmo poder de compra de abril de 2020, as famílias deveriam receber R$ 732,12. Os R$ 200 deveriam ser corrigidos para R$ 244,04. A correção tem como base a inflação medida pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) acumulada em 22,02% de abril de 2020 a junho de 2022. Esse é o índice que mede a alta de preços para a de baixa renda.
FAMÍLIAS CORTAM ALIMENTOS BÁSICOS
Para sobreviver, as famílias atendidas pelo Auxílio Brasil -que também receberam o auxílio emergencial- já cortaram alimentos básicos do carrinho de supermercado e devem cortar ainda mais. Essa é a situação na casa da autônoma Dyane Ayala, 39 anos.
“Não dá para ter carne; frutas e legumes só quando dá mesmo ou quando chega uma doação. Naquela época, o leite estava R$ 3,89. Agora está R$ 8. Vou no mercado e vou cortando. Em casa, o leite eu cortei. A gente toma chá, café, toma o que tem”, diz.
Com um filho de 17 anos, ela faz malabarismo para sobreviver e conta com doações para alimentar a família. As dificuldades trazidas pela crise econômica e reforçadas na pandemia de Covid-19 fez com que Dyane passasse a se mobilizar para ajudar outros lares em situação ainda pior que a sua na região onde mora, na Vila Nova Curuçá, extremo leste da capital paulista.
Em setembro de 2020, a dona de casa recebeu a reportagem e, mesmo na pandemia, a situação era outra. Na ocasião, comemorava a doação de alimentos básicos com sorriso no rosto e despensa cheia. “Se não tiver uma ajuda, não tem como sobreviver. A gente vai se ajudando, se fortalecendo juntos.”
O marido, de 42 anos, está desempregado e faz bicos na área de costura para tentar aumentar a renda da família. Ela já chegou a vender bolos, mas diz que o negócio não dá mais. “Não tem para quem vender e não dá para comprar os ingredientes.”
Edimaria dos Santos Marinucci, 31, mãe de Débora, seis, e Danilo, 13, acredita que, mesmo com o fechamento de 2020, os mais pobres estavam em situação melhor do que agora. “A gente estava tendo uma ajuda maior. O benefício era maior e também a gente tinha mais ajuda de cestas básicas e, hoje em dia, a gente tem menos. Nem tem mais cesta básica.”
Mara, como gosta de ser chamada, diz a cesta ajudava porque trazia os alimentos necessários para o mês e, assim, ela podia comprar alimentos diferente para as crianças. Hoje, isso é raridade. “Tem sempre que esperar o final do mês, que é quando cai o auxílio. Aí compra aquela vez e come até onde der”, diz.
Na casa de Mara não se compra mais leite com frequência. Carne é um item que foi cortado. A salsicha é que compõe a “mistura” das crianças. “Você opta. Compra o arroz ou o feijão e a misturinha é uma salsicha. Não dá para comer bem, não.” Ela faz bicos quando pode e está estudando para ser cuidadora de idosos.
Matheus Peçanha explica que a inflação de 2020 estava focada em alimentos, principalmente por causa da seca, e prejudicou especialmente famílias mais vulneráveis. Neste ano, a alta de preços tem atingido todas as famílias, prejudicando essa transferência de renda voluntária.
INFLAÇÃO E DESEMPREGO CASTIGAM
Claudio Considera, coordenador de contas nacionais do FGV Ibre e responsável pelo monitor do PIB (Produto Interno Bruto), afirma que a inflação em alta e o desemprego são os principais problemas que afetam as famílias e impedem o país de crescer.
“O desemprego está se reduzindo, mas não na proporção que deveria. Estamos com uma taxa elevadíssima, de 9%. São 9 milhões de pessoas desempregadas. Como pelo menos duas pessoas dependem desse emprego, são 18 milhões de pessoas que podem estar neste grupo de fome”, afirma.
Os dados de consumo das famílias no monitor do PIB mostram o comportamento de compra nos lares. Até mesmo produtos não duráveis, que são os alimentos, tiveram queda em maio na comparação com os 12 meses do mesmo período anterior, o que demonstra retração no poder de consumo.
Segundo Considera, em geral, o consumo geral das famílias subiu em maio, mas já demonstra comportamento de retração, apontando para a situação de dificuldade com a alta da inflação. O setor de serviços é que tem puxado o crescimento do PIB das famílias, mas isso não significa melhora na situação.
O pesquisador diz que esse comportamento está ligado ao uso de transporte e restaurantes, itens obrigatórios a quem sai de casa para trabalhar com a abertura dos locais após o início da vacinação e distribuição de doses de reforço.
SEM TER COMO ALIMENTAR OS FILHOS
Daniely Souza Alves, 25, está na lista das pessoas que receberam o auxílio emergencial de R$ 600 em 2020 e que terá direito ao valor maior do Auxílio Brasil em agosto. Mãe de Leonardo, três, Daniely calcula que os R$ 200 extras serão para comprar leite para o filho. “Uma caixa está em R$ 80. A gente vai continuar comendo ovo e salsicha, que são mais baratos. Esse ano está tudo caro.”
Para não ver o filho lhe pedir alimentos que não pode comprar, não o leva ao supermercado nunca. Nas férias escolares, as dificuldades em lidar com a criança pequena, em casa, aumentam. Sem escola, não há aula, alimentação extra, brinquedos e lazer disponíveis. “A gente não tem dinheiro para nada, não tem um lazer. Brinca na rua.”
Daniely começou a cursar pedagogia há três anos, mas parou a faculdade depois que teve o bebê. Com a atual situação, não vê perspectiva em voltar a estudar. Para tentar reforçar a renda da família, ela faz bicos, montando papelaria para festas em programas que baixa de graça e com habilidades que aprendeu sozinha, na prática, como curiosa.
A tática de não levar os filhos ao supermercado para não vê-los ter vontade de comer alimentos diferentes também é utilizada pela vizinha de Daniely, a dona de casa Camila Rossafa Conceição, 32 anos, mãe de Richardy, três, e Jhonathan, 12.
Camila cortou tudo o que pôde para garantir o leite do filho pequeno. Com uma intolerância, Richardy precisa tomar o produto de uma marca específica. Ela tentar ser beneficiária de programa que distribui leite, mas ainda não conseguiu ser inserida. “Compro duas latinhas no mês e tem que render.”
Sua mãe, Adriana Rossafa, 49, avó de Richardy, diz que o mais difícil é ver que as crianças não têm direito a um alimento diferente, comem só o básico mesmo. As duas moram no mesmo quintal, ao lado de outra filha de Adriana, e dividem o que podem. “Cada um se ajuda”, conta a avó.
Adriana afirma que quer trabalhar, que esse seria o caminho para melhorar de vida, mas lamenta seguir sem vaga. Culpa a baixa escolaridade que tem. “Estudei só até a sétima série.” A dona de casa diz que há muito não compra carne. “A gente come só uma vez por ano.” E comenta que produtos de limpeza e higiene pessoal saíram do carrinho há tempos. “Só com doação.”
Para sobreviver a tempos difíceis, Simone Ledesma de Sousa Abreu, 42, tem deixado a comida só para o filho de 17 anos, que ainda estuda. A filha mais velha, de 24, foi morar com a avó. E Simone aproveita para comer na casa da mãe ou do irmão.
Mas, às vezes, diz que fica o dia inteiro sem comer. “A gente fica tão preocupada com as coisas que não tem nem vontade de comer.” Simone recebeu só uma parcela do auxílio emergencial de R$ 600. Ela diz que houve erro, e não conseguiu ter as demais.
Com o auxílio de R$ 400, paga contas básicas de água e luz e compra leite para o filho, mas o adverte que não tem dinheiro para esse “luxo”. “Leite está um absurdo, eu falo para ele: você não é mais bebê”. Arroz e feijão não são comprados, Simone só come na casa da mãe. A tática é auxiliar a matriarca com os afazeres domésticos e dividir com ela os alimentos. “A gente se ajuda.”
AUXILIO EMERGENCIAL DE R$ 600 SEGUROU PIORA DA SITUAÇÃO
Para o presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Erik Figueiredo, a distribuição do auxílio emergencial de R$ 600, na pandemia de Covid-19, segurou a piora da situação no país. Mesmo assim, em 2021, o Brasil fechou o ano com um milhão a mais de famílias na pobreza, segundo dados do instituto.
“Considerando a linha de pobreza do Auxílio Brasil, em 2019, a proporção de pobres era de 9,32% e passou para 10,70% em 2021”, diz. A explicação, segundo ele, são os benefícios pagos na pandemia. “A razão para isso foi forte injeção de recursos públicos no combate à pandemia, ainda em 2020, com o auxílio emergencial, benefício emergencial de preservação do emprego e da renda, entre outros programas”, afirma.
Estudos da FGV Social, no entanto, mostram um quadro ainda pior. De acordo com dados do órgão, o contingente de pessoas com renda domiciliar per capita (por pessoa da família) de até R$ 497 mensais atingiu 62,9 milhões de brasileiros em 2021, cerca de 29,6% da população total do país.
“Este número em 2021 corresponde 9,6 milhões a mais que 2019, quase um Portugal de novos pobres surgidos ao longo da pandemia. A pobreza nunca esteve tão alta no Brasil quanto em 2021, desde o começo da série histórica em 2012” diz a análise.
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