FERNANDA BRIGATTI E PAULA SOPRANA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Conquistar o consumidor sem que ele tenha consciência disso. Influenciar um debate público sem deixar digitais visíveis.
As ações podem soar, à primeira vista, teoria da conspiração, mas são os objetivos do chamado marketing 4.0.
Nele, grandes empresas fecham contratos com agências prevendo cláusulas de confidencialidade para que seus produtos e serviços sejam apresentados sem que suas marcas sejam associadas a eles logo de cara.
A estratégia já havia sido documentada no marketing político, como na criação do chamado gabinete do ódio no governo Jair Bolsonaro (PL) ou durante a campanha do ex-presidente americano Donald Trump.
Não à toa, a versão empresarial desse tipo de marketing vem sendo capitaneada por agências até então conhecidas por sua atuação no campo da política.
Para o pesquisador da Universidade Northwestern Philip Kotler, especialista em marketing que definiu o 4.0, ele é uma evolução da modalidade digital de propaganda na maneira de abordar, interagir e vender um produto ou serviço.
Essas novas abordagens surgem antes das regras que tentam enquadrá-las, deixando vários casos numa zona cinzenta da propaganda: até onde é ético receber dinheiro de uma empresa para influenciar os outros sem deixar claro quem é o interessado por trás das ações?
Um exemplo desse novo modelo é uma ação recente para as Americanas.
Num vídeo para o Instagram, a personagem Adenia Chloe, a Moça do Marketing da Aff the Hype, marca de artigos “ranzinzas para pessoas bem-humoradas”, conversa com a mãe (ela também uma personagem da marca) pelo telefone.
No diálogo simulado, a mãe da Moça expõe à filha o desejo por um certo eletrodoméstico e emenda uma piada adequada ao ambiente onde foi veiculada, os stories do Instagram, publicações que somem em 24 horas: “Minha filha, esse pessoal da internet que é famosinho, assim igual a você, eles não compram mais nada não, é tudo permuta”, diz a personagem.
Quando a conversa encenada chega ao fim, o usuário descobre a patrocinadora da ação: “Quando chegar aqui eu tiro uma foto e coloco lá @americanas no stories”.
No mesmo dia, a personagem da Moça havia apresentado um “live shopping” das Americanas, transmitido no perfil da varejista no Instagram.
Neste caso, a marca por trás da ação é revelada no final, mas o marketing 4.0 também pode simplesmente não veicular a empresa contratante.
Essa teria sido a situação do iFood, cuja suposta presença por trás de uma campanha foi revelada em reportagem publicada pela agência Pública no início do ano. Segundo o site, agências criaram para o aplicativo de delivery perfis falsos que interagiam, no Twitter, comentando críticas à empresa e se manifestando contra paralisações de entregadores, que protestavam por melhores taxas durante a pandemia.
O Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) abriu uma investigação sobre o caso, e o Ministério Público Federal pediu explicações à empresa de entregas e à agência SocialQI, responsável pela ação. O iFood afirmou que não encomendara o marketing de influência e que nem tinha contrato com a SocialQI.
A agência, na verdade, havia sido contratada por outra uma outra, a Benjamim, que não respondia ao departamento de marketing do aplicativo. Ambas fazem trabalhos políticos para o PSDB. As duas agências não quiseram comentar.
O contrato com a Benjamim foi fechado pelo setor de políticas públicas do iFood. A ideia era, como o nome prevê, acompanhar redes sociais quanto a questões políticas: como a opinião pública –pesquisadores, jornalistas, políticos e mesmo os entregadores– entendia assuntos que afetam a empresa, como regulamentação, valor de pagamento, espera, tributação, segurança e concorrência.
Após a divulgação do caso, o contrato com a Benjamim foi rompido, uma auditoria interna foi iniciada e o iFood se disse disposto a articular um debate sobre conceitos como desinformação nas redes.
O caso do aplicativo é visto hoje como um contraexemplo. Para profissionais de marketing digital ouvidos pela reportagem, criar perfis falsos ou tentar atingir as emoções dos consumidores sem se identificar são práticas inadequadas.
Segundo eles, há outros meios de criar conexão com o consumidor, como a partir de pequenas comunidades online (os nichos), de modo que o próprio cliente trabalha pela marca, numa tática chamada de “teste de narrativa”.
Nessa estratégia, são usados os chamados avatares –perfis que, em vez da foto de uma pessoa, usam desenho ou ilustração e não adotam o nome de uma pessoa. Por meio desses avatares, as agências interagem na internet e testam que tipo de discurso tem adesão no público-alvo que interessa à empresa.
Já práticas como pagar para conseguir engajamento nas redes sociais entram numa zona cinzenta na opinião de Clau Boaventura, diretora de comunicação da Abradi (Associação Brasileira dos Agentes Digitais). “Não é ilegal, mas também não é muito moral.”
Além de seguidores e curtidas, é possível comprar comentários e reações. Em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo, Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio, escreveu que as interações e respostas nas publicações são hoje mais importantes do que os posts.
“Grupos econômicos e políticos, que já têm poder, aprenderam técnicas para controlar a parte de baixo [os comentários] das mídias sociais. Essas técnicas envolvem uso de robôs, sockpuppets [perfis falsos] e times coordenados de forma centralizada para espalhar a ‘mensagem’ ou a ‘ação’ que é do interesse desses grupos.”
A utilização de perfis falsos como tática para monitoramento da concorrência é comum, afirmam pesquisadores e profissionais de propaganda, mas são perfis que apenas observam, sem interagir.
A prática, porém, é vista como secundária, porque as agências desenvolveram maneiras mais efetivas e controladas de afetar o público-alvo.
A principal ferramenta são os algoritmos -sequências de operações computacionais que “aprendem” padrões de comportamento e interesse–, que potencializam as estratégias do marketing 4.0.
São eles que identificam, por exemplo, quem está mais interessado por xampus anticaspas ou por barracas de acampamento, e mais suscetível a ser afetado por anúncios desses produtos.
No estágio atual, o foco da propaganda é o cliente, e não mais o produto. “Antes, vendiam-se os atributos dos produtos. Hoje, espera-se que as marcas consigam chegar ao nível de uma conversa entre dois indivíduos”, diz o especialista em marketing digital João Vitor Rodrigues, professor na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing).
Deco Bancillon, jornalista que comanda a agência de estratégia digital em Brasília (DF) que leva seu sobrenome, diz a autenticidade é a raiz da conexão com audiência. É o tipo de relação que permite uma marcar ter fãs, ao invés de apenas consumidores.
Para chegar a essa percepção de diálogo, é praticamente inevitável o uso de influenciadores digitais, memes e uma leitura minuciosa de dados que definem o tom das abordagens, a linguagem e como cada ação será apresentada para cada tipo de público.
Com a pulverização do mercado -pesquisa da Nielsen aponta para 500 mil pessoas trabalhando por meio das redes sociais no Brasil-, há influenciador para todo tamanho de marca.
“No fundo, ninguém quer consumir publicidade. O influenciador virou um tipo de melhor amigo numa comunidade, é quem aprova um produto antes para que os outros comprem”, diz Vicky Romano, sócia da agência de marketing de influência Mesa Labs.
“A publicidade precisa integrar o ‘lifestyle’ [estilo de vida] do influenciador, não pode ser mais só ‘1 feed e 3 stories’ “, diz ela.
“Um feed e três stories” é o feijão com arroz de um contrato de influenciador, o trabalho básico que ele faz para promover uma marca. Significa uma publicação no feed (perfil no Instagram) e três stories (três conteúdos que desaparecem depois de 24 horas).
Existe também o “funil da influência”, modelo no qual o porte do influenciador e da marca definem o tipo de contrato. Um macroinfluenciador, alguém com mais de 500 mil seguidores, em teoria, é agenciado por um profissional ou faz parte de um casting -como os catálogos de modelos.
Companhias que os contratam também precisam de um retorno sobre esse investimento, por isso a negociação é intermediada por um terceiro. O funil vai até o nanoinfluenciador, que ou integra um casting ou entra em contato com as marcas por mensagens diretas no Instagram.
Os orçamentos, segundo Romano, são aleatórios, “uma Bolsa de Valores”. “O influenciador quer trocar o carro, fazer uma viagem, às vezes está com a popularidade em alta, às vezes em baixa… Tudo interfere no valor que vai cobrar.”
Algumas agências chegam a cobrar 40% em cima do cachê do influenciador.
Orçamentos vistos pela reportagem mostram que um macroinfluenciador pode cobrar R$ 35 mil por uma live, nove stories, um reels [vídeos curtos postados no Instagram] e uma galeria de fotos; ou cerca de R$ 40 mil por um reels e seis stories, além de direito de replicação das publicações nas redes sociais da marca.
Conar condena mensagens publicitárias sem identificação Para o pesquisador filipino Jonathan Ong, professor associado de comunicação da University of Massachusetts Amherst, as análises sobre a produção de desinformação ainda estão muito concentradas na responsabilidade das plataformas e de seus moderadores.
Ele chama atenção para necessidade de se cobrar também a responsabilidade das indústrias criativas e digitais no problema.
Um dos primeiros casos de interesse público no setor de marketing de influência -área que usa o capital social de pessoas com muitos seguidores nas redes sociais para vender- envolveu a Sephora, de cosméticos, e três blogueiras, em 2012.
A empresa e as influenciadoras Thássia Naves, Lala Rudge e Mariah Bernardes receberam advertência pública por terem feito “propaganda velada” em seus blogs.
Na ocasião, o Conar deixou claro que blogs não podem disfarçar quando um post é uma propaganda paga, e essa interpretação foi estendida às redes sociais.
Embora não haja consenso sobre o limite da propaganda, o Conar diz que toda comunicação que parte de uma empresa ou marca precisa ser identificada.
“O ponto de partida precisa ficar claro. Se a marca faz um anúncio, contrata e participa da produção de uma mensagem, é necessário ter a identificação”, diz a advogada Juliana Nakata Albuquerque, diretora do conselho.
Lala Rudge (que tem 1,7 milhão de seguidores no Instagram) à época disse que as marcas que apareciam em seu perfil eram parceiras e que “não fazia propaganda de nada que fugisse de sua realidade” -justamente o comportamento que as empresas desejam, ou seja, que seus produtos sejam integrados de modo natural à rotina dos influenciadores.
A resposta da Sephora foi que independentemente da compra de espaços publicitários em veículos online, convidava blogueiros a expressarem opiniões sobres seus produtos, sem jamais influenciar nas resenhas.
Há pouco mais de um ano, o Conar publicou um manual para influenciadores na tentativa de criar parâmetros para os “publis”. Ainda assim, mesmo olhares desatentos identificam, em passadas pelas redes, ações que simulam uma recomendação espontânea, uma dica.
No entanto, há campanhas programadas para driblar o Conar. É comum em agências que uma peça reconhecidamente inadequada seja colocada no ar com uma substituta pronta. Se o conselho notificar as empresas, a peça-problema é substituída imediatamente. O recado, porém, foi dado nas horas ou dias em que a peça ficou no ar.
Nesse mercado, além da transparência, está em jogo o custo das ações. A SocialQI, por exemplo, é conhecida no mercado por seu software para monitoramento de redes (no jargão, social listening).
A ferramenta mapeia mídias sociais e consegue realizar uma espécie de catálogo de emoções, que podem ser positivas, negativas ou neutras.
A criação de uma sala com o monitoramento e a geração de dados em tempo real não sai por menos de R$ 1 milhão, dizem pessoas com conhecimento no assunto.
O alto custo desse posicionamento digital coloca em xeque algumas das premissas do mundo conectado, como a de que há certa igualdade na competição entre os concorrentes.
Há, sim, mais ferramentas de divulgação. O dono de uma pequena papelaria de bairro jamais teria condições de anunciar em uma rádio ou televisão, mas consegue melhorar seu alcance na rede social usada por seu público-alvo.
“Ainda assim, continua sendo desleal, porque ela não está concorrendo no mesmo nível”, afirma João Vitor Rodrigues, da ESPM, para quem há o risco de concentração do mercado nas mãos de poucas empresas.
Enquanto as grandes conseguem bancar estratégias de múltiplos braços, ao pequeno cabe o impulsionamento disponibilizado pelas redes.
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