BRUNO LUCCA
FOLHAPRESS
Kim Helena, 22, mora no Jardim São Luís, zona sul de São Paulo. Em janeiro deste ano, a assistente de produção, uma mulher trans, retificou seu nome e sexo em cartório, um desejo antigo.
A jovem faz parte dos 1.124 brasileiros em todo o país que, segundo levantamento da Arpen (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), retificaram seus nomes e, em simultâneo, o gênero em cartório de registro civil nos primeiros seis meses deste ano.
Desde a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), em 2018, que reconheceu o direito de transexuais adequarem sua identidade de gênero e nome sem necessidade da cirurgia de redesignação sexual, nunca foram feitas tantas solicitações em um só semestre.
O número deste ano supera em 44% o registrado entre janeiro e junho do ano passado (782). Também supera o do primeiro semestre de 2020 (636) e o do mesmo período em 2019 (937).
“Chega um momento em que é difícil aguentar as pequenas violências diárias. Em diversas situações, apresentar seu documento com um nome masculino é motivo de muito estresse. Por mais que você tenha um nome social, não é todo lugar que coloca isso como prioridade”, diz Helena.
Kim Helena buscou informações antes de concretizar as suas retificações. A jovem utilizou o portal Poupatrans, um coletivo formado por mulheres transexuais que disponibiliza um passo a passo de como realizar adequações de nome e gênero, além de ser atendida no Centro de Cidadania LGBTI da zona sul, localizado em Santo Amaro.
“Lá eu fui muito bem atendida. Ofereceram apoio jurídico, e a advogada me explicou sobre toda a documentação que eu precisaria. Muita coisa. Percebi então que, por conta dessa documentação previamente necessária, o processo ficaria caro”, afirma Helena.
Segundo a Arpen, o procedimento de retificação custa, em média, R$ 166. Sobre a documentação prévia, a associação orienta que os valores sejam consultados regionalmente.
Ainda no Centro de Cidadania, Kim foi informada sobre a existência de uma fila social para retificações, a qual disponibiliza que interessados realizem o processo sem custos. A posição na fila é definida após avaliação socioeconômica. A jovem resolveu deixar seu nome e aguardar.
No último mês de junho, próximo ao Dia do Orgulho LGBTQIA+, Kim Helena conseguiu realizar as retificações. “Foi um momento de muito alívio”, diz. O passo seguinte foi a emissão do novo RG (Registro Geral), realizada na última quarta (27).
A quantidade de solicitações poderia ser ainda maior, mas nem todas as pessoas se sentem confortáveis para realizar as mudanças.
É o caso de Lui Capeloti, 22, que mora na Vila Liviero, zona sul da capital paulista. Estudante, Lui é uma pessoa trans não binária e optou apenas pela inclusão do nome social em seus documentos, deixando as retificações de nome e gênero para outro momento. No estado de São Paulo, ao solicitar a alteração de gênero, ou sexo, de registro, deve-se optar entre masculino e feminino, o que desmotivou Lui.
“Não me senti confortável para retificar o gênero para feminino, mas é uma concepção que posso mudar futuramente. Estou no começo da minha transição e indo devagar com as coisas. Quem sabe as regras não mudam em São Paulo? Não vejo muito sentido para continuar assim”, diz Capeloti.
A não binaridade se refere a pessoas cuja identidade de gênero não se restringe à lógica binária, ou seja, à noção de que somente existiriam homens e mulheres. Pessoas não binárias podem vivenciar identidades agênero (sem gênero), bigênero (ambos os gêneros), de gênero neutro, fluido ou qualquer outra identidade fora do espectro masculino-feminino.
Segundo pesquisa realizada na Faculdade de Medicina de Botucatu no ano passado, a proporção de cidadãos identificados como transgêneros ou não binários na população adulta brasileira é de aproximadamente 2%, que representam quase 3 milhões de indivíduos.
Outros estados, como o Rio Grande do Sul, já possuem jurisprudência favorável à inclusão da não binaridade em todos os documentos.
Para realizar o processo de alteração de gênero e nome nos cartórios de registro civil, é necessário apresentar todos os documentos pessoais, comprovante de endereço e as certidões dos distribuidores cíveis, criminais -estaduais e federais do local de residência dos últimos cinco anos-, dos tabelionatos de protesto e da Justiça do Trabalho.
Na sequência, o oficial de registro deve realizar uma entrevista com o requerente. Não há necessidade de apresentação de laudos médicos e nem é preciso passar por avaliação de médico ou psicólogo.
Visando orientar os interessados, a Arpen editou a Cartilha Nacional sobre Mudança de Nome e Gênero em Cartório, que pode ser acessada no site da entidade, em que apresenta o passo a passo para o procedimento e os documentos exigidos.
“Trata-se de um documento prático, com instruções detalhadas que podem auxiliar as pessoas a realizarem o procedimento direto em cartório, sem a necessidade de ação judicial ou gastos adicionais com advogados e custas”, diz Gustavo Fiscarelli, presidente da Arpen.