Quando o italiano Carlo Collodi escreveu “As Aventuras de Pinóquio”, entre 1881 e 1882, não imaginava que quase um século e meio depois sua história ainda iria reverberar com força. Nem que um império do entretenimento faria sua segunda adaptação do livro, 82 anos depois da primeira, e essa segunda adaptação revelaria uma mudança drástica no entendimento do que é criança e do que ela é capaz de compreender.
“Pinóquio” é dirigido por Robert Zemeckis, que mais uma vez, após o marcante “Uma Cilada para Roger Rabbit”, de 1988, mistura live action com animação. Para viver o menino de madeira, o grilo falante e todos os outros animais da história, temos uma combinação meio indigesta de efeitos digitais. Para viver o simpático Gepeto, temos o senhor símbolo da Hollywood atual, Tom Hanks.
A trama é uma velha conhecida: o humilde marceneiro Gepeto faz um menino de madeira e esse menino quer ser normal, de carne e osso. O grilo falante e a fada azul o ajudam nas aventuras que terá pela frente. O maior problema deste novo “Pinóquio” tem a ver com a decadência conceitual da Disney e o sacrifício necessário para se construir um império massificador embrutecido, que confia o mínimo possível no espectador e por isso procura apagar todos os traços de ambiguidade da narrativa.
Praticamente uma cópia do “Pinóquio” de 1940, em que o bom gosto das animações da época é substituído por uma poluição visual que beira o insuportável, este novo procura simplificar ao máximo o original, que por sua vez já era uma simplificação da história de Collodi. Assim, Pinóquio se transforma de uma criança sapeca, com certo nível de crueldade, num menino ingênuo, com o coração puro, incapaz de fazer mal a alguém a não ser por acidente. Ele precisa ser um exemplo, porque se presume que uma criança hoje pode ser mal influenciada pelo que vê na tela.
Mesmo o original de Walt Disney tinha algum nível de complexidade, presente por exemplo na fala do Grilo Falante após perceber que Pinóquio havia feito sucesso no show comandado pelo picareta chamado Stromboli: “Por que um ator precisaria de consciência?” O entretenimento infantil sempre procurou agradar também aos adultos que levavam as crianças ao cinema. Hoje, parece que os produtores contam com a infantilização total dos adultos, ou com a incapacidade de alguns para se divertir como crianças inteligentes por um par de horas.
Se compararmos então com “As Aventuras de Pinóquio”, minissérie televisiva de sucesso realizada por Luigi Comencini em 1972, que teve uma versão reduzida para lançamento em cinemas, vemos a distância que separa o cinema italiano da época, sempre político porque sempre crítico, e o cinema acrítico feito na Hollywood de hoje. No novo “Pinóquio”, tudo deve acontecer rapidamente, ação atrás de ação, sem lugar para a reflexão. Falar em montanha-russa é chegar a uma parca ideia de um filme incapaz de imprimir um ritmo nuançado: tudo é desespero e correria.
Que Zemeckis tenha se metido nessa enrascada é compreensível. Que tenha se permitido apenas bater o cartão, sem acrescentar um mínimo de sua criatividade para um pouco de crítica, nem que seja por contrabando, é um sinal de decadência terrível de um diretor irregular, mas que nos últimos dez anos fez ao menos dois belos filmes: “O Voo”, de 2012, e “Aliados”, de 2016.
Se há uma única vantagem dessa nova versão em relação às outras, ela se deve à ideia de inclusão. A fada azul é vivida por uma atriz negra, Cynthia Erivo. A professora vista rapidamente levando a fila de alunos para a escola é negra também, assim como a pequena marionete Sabina e sua manipuladora. É pouco, mas compreensível, já que a história se passa na Itália no final do século 19.
PINÓQUIO
Onde Disney +
Classificação Livre
Elenco Tom Hanks, Cynthia Erivo, Giuseppe Battiston
Produção EUA, 2022
Direção Robert Zemeckis
Avaliação Regular
FolhaPress