*Daniel Medeiros
Aqueles que leem Sérgio Buarque de Holanda entendem o que ele quis dizer quando se referiu aos brasileiros como “homens cordiais”. No entanto, acabamos por aceitar, sem muito senso crítico, a ideia de que a cordialidade a qual se referia o pai do Chico era a de nosso espírito acolhedor, solidário, amistoso, sempre disposto a ajudar os outros, sem reservas. Aceitamos porque é tão bonito pensar que somos todos, como povo, assim, generosos e tolerantes, incapazes das violências que marcaram outras terras, como a Europa com seus fascismos ou os EUA com sua guerra civil e sua intolerância racial. Nós, não. É certo que há ali ou acolá um quê de exagero, mas isso é só da boca pra fora. Brasileiro não discrimina ninguém e, na hora do aperto, é o mais solidário do mundo. Somos cordiais. Ponto final.
Nos bancos escolares, aprendemos que nossa Pátria nunca precisou de guerras fratricidas para se consolidar, exceto uma ou outra rusga sem importância, sempre promovida por radicais alimentando ideias estrangeiras, exóticas. Por outro lado, unimo-nos contra o inimigo externo, os holandeses que forjaram nosso Exército e os paraguaios que nos deram tantos heróis. Eles, os estrangeiros, que tentem desafiar nossa cordialidade e verão que “um filho seu não foge à luta”. E também os infiltrados em nossa terra e, igualmente, os “inocentes úteis” que replicam as ideias alienígenas como se elas pudessem frutificar em nossa terra de tradições tão caras. Mas, tirando isso, ajudamos a todos, queremos bem a todos, somos dedicados e fiéis, amistosos e sempre dispostos a colaborar. É como somos. E ponto final.
Nas eleições, temos predileção pelos candidatos que defendem nossos valores e pregam nossas convicções mais profundas. Nem todos são perfeitos, não se pode esperar isso, mas o importante é estar em sintonia com o que se acredita, a família, a religião, a Pátria, contra aqueles que querem destruir, modificar, enfraquecer. O Brasil é um país só, de um só povo, com a mesma forma de pensar e com o mesmo espírito. Para que querer mexer com ideias tão antigas e tão enraizadas em nossos corações?
Aqueles que leem Sérgio Buarque de Holanda entendem o que ele quis dizer quando se referiu aos brasileiros como “homens cordiais”. E sabem que ele se referia a nós, os brasileiros, como um povo incapaz de aceder à racionalidade quando confrontada com a emoção. Alguns séculos antes, Spinoza também alertava, por outros caminhos: “Os homens afirmam que as coisas desagradáveis ocorrem em face de os homens terem feito algo errado – ofensas ou erros cometidos nos cultos a D’us. E mesmo que o tempo e a experiência mostrem que as coisas agradáveis e desagradáveis ocorrem, indistintamente, aos devotos e aos ímpios, o preconceito e a superstição não se alteram.”
Há um mundo para quem o vê com emoção e outro mundo para aqueles que conseguem escalar o estreito campo da racionalidade, porta de entrada da Política, da Ética, além, é lógico, da Ciência. Para esses, a ideia de respeito inclui a diferença, a ideia de Pátria inclui a pluralidade, a ideia de religião inclui a diversidade de matrizes religiosas, a ideia de família inclui a ideia de afeto sem condições ou padrões pré-estabelecidos. E há, sem dúvida, a ideia de emoção, de amor, mas sem que esses sentimentos sejam capazes de descarnar o discernimento e a ação voltada para um espaço público no qual todos devem ser ouvidos e respeitados, e no qual a ideia de maioria é só uma técnica de escolha de representantes e não uma chancela para o extermínio ou para a segregação.
No limite, sempre acreditamos que nossa cordialidade não seria totalmente cega pelo preconceito e pela superstição e que “não seria possível” navegarmos, acreditando que o mundo fosse realmente plano.
Enganamo-nos. Estávamos com a vista enevoada por nossa crença otimista. Agora só resta dizer: como dói.