Neste domingo, 30 de outubro, o Brasil deu um dos passos mais aguardados de sua trajetória. Escolheu o Chefe de Estado e o governante que comandarão o país nos próximos quatro anos, ao longo de um ciclo político de transição, como o que será instalado a partir de janeiro de 2023.
Que pilares sustentarão o edifício da política nos próximos tempos? O edifício será sustentado por uma base institucional mais resistente às crises, menos tensionada, mais sólida e mais resistente às intempéries ou continuaremos a padecer abalos de instabilidade? Quando as placas tectônicas da política se acomodarão? Ou, para usar a expressão da professora Ângela Alonso, da USP, viveremos sob o império de um “nacionalismo beligerante, um moralismo hierarquizador, uma retórica fragmentada, aforística, virulenta, reiterativa de binários primários” ou sob a égide de um pacto político, a se impor em nome da governabilidade, o que deve resultar em programas agregadores de atendimento às demandas sociais?
O fato é que seria inviável esticarmos o ciclo de intensa tensão, esse em que o Poder Judiciário, até então exercendo o papel de poder moderador, passa a ser alvo de um tiroteio voltado para macular sua missão de aplicador da justiça. O mais sagrado dos poderes enfrenta um paredão de questionamento por parte de parcela da comunidade nacional, só devendo resgatar sua grandeza quando os entes federativos, em harmonia, se esforçarem para resgatar uma histórica credibilidade.
A tarefa pressupõe, é evidente, ampla mexida nos pilares da democracia representativa, a partir da propalada reforma política, com a recuperação de matizes ideológicos dos partidos e clarificação de seus programas doutrinários. A diminuição do número de siglas, processo em operação, a partir de exigências impostas pela cláusula de barreira, e a criação de federações partidárias, ajudarão a formar escopos densos e críveis. Mas essa meta, como acentuamos, dependerá da vontade do poder legislativo em mudar sua estampa e voltar a ganhar respeito do eleitorado.
Quanto ao poder executivo, impõe-se a ele um regramento que torne claros os seus projetos e seu animus operandi, com a eliminação de tumores que corroem seu corpo, como a lei do “toma lá dá cá” ou o ato de lavar as mãos ante orçamentos secretos.
A visão franciscana do “é dando que se recebe” não pode continuar a manchar as vestes do mandatário-mor. O centrão, como espaço de congregação de massas amorfas, siglas pasteurizadas, ideários vazios, há de rearrumar sua moldura de conteúdo. Tal exigência obrigará suas lideranças a repensar o sistema de mandos e a composição das peças orçamentárias.
Na verdade, o que se faz necessário é repaginar a política, puxando-a do lodo do pântano e limpar seus vãos e desvãos. Urge reerguê-la com o fito de preservar sua missão a serviço da polis, afastando-a da seara de profissão a serviço de pessoas e grupos.
Como é sabido, a degradação política se espraia por todos os cantos. Aqui e alhures. A rede da representação não tem passado no teste de qualidade. Em todos os continentes, toma corpo o sentimento de que a política, além de não corresponder aos anseios das populações, não é representa¬da pelos melhores cidadãos, como estatuía o ideário aristotélico. A fisionomia dos homens públicos se apresenta esboroada. Os governos mudam dirigentes, mas não conseguem melhorar o cotidiano das massas.
Saint Just, um dos jacobinos da Revolução Francesa, já expressava nos meados do século XVIII, uma grande desilusão: “todas as artes produziram maravilha, menos a arte de governar, que só produziu monstros”. A frase se desti¬nava a enquadrar perfis sanguinolentos. Mas, na contemporaneidade, canalhice, hipocrisia e mediocridade inundam os espaços públicos.
Os mecanismos tradi¬cionais da democracia liberal estão degradados. Basta apurar o sentimento dos eleitores. O desinteresse das populações pela política se explica pelos baixos níveis de escolaridade e ignorância sobre o papel das instituições, e ainda por de¬sinteresse dos políticos em relação às causas sociais. Na primeira década do século 20, o declínio moral da classe governante mostrou-se intenso.
A esfera pública virou arena de interesses. Deflagaram-se disputas intestinas na esteira de discussões violentas. A res publica bifurcou-se com a vereda do ne¬gócio privado. O diagnóstico é de Hannah Arendt: “A sociedade bur-guesa, baseada na competição, no consumismo, gerou apatia e hosti¬lidade em relação à vida pública, não somente entre os excluídos, mas também entre elementos da própria burguesia.”
O que fazer para limpar a sujeira que borra a imagem do homem público? Resposta: basta que ele cumpra rigorosamente seu dever. E que seja dado àqueles que saem da linha o passaporte de saída da política. Com a melhor arma de proteção da cidadania, o voto.
Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato