*Daniel Medeiros
Todo ano que termina nos faz respirar aliviados, principalmente por ainda estarmos respirando, apesar de tudo. E isso quer dizer que, até aqui vai tudo bem. Afinal, ainda estar por aqui implica a possibilidade de refazer os caminhos abandonados, reiniciar as promessas esquecidas, recuperar os prejuízos ocorridos, reformar as decisões mal pensadas, recalcular os rumos da jornada. Ou seja, continuar vivendo. O tempo passa e percebemos porque deixamos nossas marcas pelo caminho, como o náufrago na ilha deserta que vai riscando a pedra para evitar esquecer que foi esquecido pelo mundo. Manter nossa fé no tempo e na ideia de que somos o que somos porque podemos mudar as coisas ao longo dele é a grande marca de distinção da nossa espécie. Imagino minha cachorrinha que, por mais que me ausente por quinze minutos, recebe-me como se eu estivesse voltando de uma peregrinação a Santiago de Compostela. O que é a vida para ela? Um eterno esperar e angustiar-se pela ausência de seus amados. Uma vida sem noção de que uma hora, um dia, uma semana, podem ser amortizados na medida em que depois podemos contar o tempo juntos em um mês, um ano, uma vida. Nossa recusa em sermos cães é que define nossa permanência no mundo, sonhando, planejando, construindo, plantando araucárias aos cinquenta anos de idade e olhar a pequena muda e pensar: ainda te verei alta e robusta.
Todo ano, por mais que tenha sido marcado por eventos ruins, eles acabam depositando-se na memória e, depois, no largo campo do esquecimento. Tudo graças ao nosso infinito apetite por ter boas sensações da vida. Isso é que permite que as dores, aos poucos, se dissipem e aquela ideia de que “jamais voltaremos a sorrir” acabe, ora veja, em um sorriso, meio envergonhado, mas um sorriso. Freud já lembrava, em seu “Luto e Melancolia”, da importância de deixarmos o tempo atuar sobre nossas energias psíquicas até que elas resolvam aceitar a perda do objeto de desejo e voltarem-se para outro, pois sempre há um objeto de desejo largado por aí, nesse mundão. A doença, lembrava o mestre vienense, é continuar a amar o objeto perdido e ignorar sua partida, seu desfazimento no Letes, o rio do esquecimento necessário.
Todo ano que finda, guarda, ironicamente, uma festa de nascimento e depois uma festa de despedida, no intervalo de uma semana. Os cristãos comemoram o nascimento de Jesus, o grande astro da esperança, e depois, despedem-se do ano à espera de Janus, o deus romano, bifronte, uma face para o futuro, uma face para o passado. Pois não é isso a esperança? O desejo de que o passado não se modifique de maneira tão abrupta e que o futuro se pareça com que há de melhor dele. Nos brindes da passagem, o desejo que começa sempre com a frase: nesse ano, eu espero…
Ainda há, nessa época do ano, a promessa. Outra palavra que faz muito sucesso, buscando corrigir o que um ano só (ou uma vida inteira, até aqui) não conseguiu. Esperamos e prometemos, tentando agarrar o tempo em nossas mãos, fazê-lo uma massa de modelar segundo nossos desejos. Ilusão, sabemos. Mas queremos participar desse mistério que é estarmos no mundo, em meio ao invisível do tempo, e logo depois, em um estalo, não estarmos mais. Quando prometemos, projetamo-nos para um futuro, próximo ou distante. Tudo o que queremos é estar lá para cumprir a promessa. E de nosso sorrir – ou lamentar – mais um ano que passou. E dizer: até aqui, tudo bem.