Qualquer pessoa pode pegar, mas o vírus impacta de maneira desproporcional certos grupos sociais, num cálculo atravessado por desigualdades e vulnerabilidades sociais. Essa característica da pandemia da Covid-19 é também um retrato de outra pandemia que, mesmo aos 40 anos, segue carregada de estigmas morais típicos de um vírus de transmissão majoritariamente sexual.
A Aids hoje afeta desproporcionalmente pessoas negras, homens que fazem sexo com homens, usuários de drogas e mulheres trans, como mostra o relatório anual do UNAids, programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids. No Brasil, a cada hora, ao menos cinco pessoas foram infectadas pelo vírus HIV em 2021. Segundo estimativa da ONU, ao longo do ano passado o Brasil teve 50 mil novos casos, o que fez o país chegar à marca de 960 mil pessoas vivendo com HIV.
No mundo, são 38 milhões de pessoas vivendo com o vírus. Em 2021, foram 650 mil mortos em decorrência da Aids no mundo, 13 mil deles no Brasil. “Temos uma pandemia estável com um número de mortes anuais muito elevado porque existe uma desigualdade muito grande no país que faz com que o acesso ao tratamento e a medidas de prevenção e diagnóstico sejam desiguais”, explica o médico infectologista Esper Kallás.
Entre 2010 e 2020, enquanto a proporção de casos de Aids entre pessoas brancas no Brasil caiu 9,8%, entre pessoas negras houve aumento de 12,9%, segundo dados do Ministério da Saúde. Entre as mortes por Aids, o período registra o mesmo movimento em direções opostas: queda de 10% entre pessoas brancas e crescimento de 10% entre pessoas negras. “A desigualdade impacta diretamente na resposta ao HIV no mundo, afetando populações mais vulneráveis, que têm seu risco de infecção aumentado”, explica Ariadne Ribeiro Ferreiro, oficial para comunidades, gênero e direitos humanos do UNAids no Brasil. “Uma mulher trans no Brasil, por exemplo, tem 40 vezes mais risco de ser infectada do que a população em geral”, ilustra.
Segundo ela, essa vulnerabilidade não se explica apenas por fatores biológicos. “O preconceito cria barreiras que prejudicam o acesso às tecnologias biomédicas de prevenção, diagnóstico e tratamento capazes de interromper a cadeia de transmissão, ainda que todos estejam disponíveis por meio do Sistema Único de Saúde”, afirma ela.
A baiana Rihanna Rios, 28, conhece essa história. “Cansei de ser a única mulher trans nas filas para fazer o teste. As meninas tinham muito medo de acessar esses serviços. Ainda têm”, conta ela, que hoje trabalha com prevenção ao HIV/Aids junto a outras mulheres trans em São Paulo. “É um público que acessa muito pouco informações e serviços de saúde, apesar de ser público-alvo de infecções pelo HIV”, avalia ela. No final de 2018, Rios foi voluntária de um estudo clínico sobre uma terapia de profilaxia-pré exposição (Prep), adotada em grupos sob alto risco de contaminação.
“As meninas tinham tanto medo de participar [do estudo clínico de Prep], achando que era um programa do governo pra matar travestis”, conta ela, revelando o abismo invisível que ainda separa outras mulheres trans e travestis da prevenção e do autocuidado no serviço público. Ela lembra que em 1987, a operação Tarântula, da Polícia Civil de São Paulo, passou a perseguir travestis sob o pretexto de combater o vírus. “Criaram uma estratégia populista que colocava a culpa nas pessoas. Perseguir, matar e prender travestis era uma forma de limpar, entre aspas, as ruas da Aids. Muito desse imaginário ainda existe onde o acesso a cultura e educação é deficitário”, diz Ariadne, sobre parte das origens do quadro atual.
“Além de afetar o bem-estar e a vida de milhões de pessoas, a continuidade dessas barreiras de desigualdade pode impedir que a meta de acabar com a pandemia de Aids, como ameaça à saúde pública, seja alcançada até 2030”, completa Claudia Velasquez, diretora e representante do UNAids no Brasil. Acabar com a Aids até 2030 é um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Fatores como a pandemia de Covid-19 e a guerra na Ucrânia, no entanto, também afetaram essa meta. Segundo o relatório da ONU, essas emergências sufocaram as capacidades dos países de responder à Aids.
O relatório do UNAids também mostra que os esforços para garantir o acesso ao tratamento antirretroviral, que salva vidas e interrompe o ciclo de transmissão, está falhando. A meta estabelecida no âmbito das Nações Unidas, chamada de 90-90-90, é de que 90% das pessoas infectadas sejam diagnosticadas. Destas, 90% estejam sob tratamento com terapia antirretroviral (ART), que reduz a carga do vírus HIV no organismo do indivíduo infectado. E dentre as pessoas em ART, 90% estejam com carga viral tão reduzida que, na prática, não transmitem mais o vírus.
Em 2021, no mundo, esses números são 85-88-92. No Brasil, são 88-83-95. Para Esper Kallás, é essencial ampliar o acesso ao tratamento, maior gargalo entre os dados da meta 90-90-90, que afeta especialmente as populações mais vulneráveis, impactadas por outras violações e violências. No mundo, o número de pessoas em tratamento de HIV cresceu mais lentamente em 2021 do que nos 10 anos anteriores. Enquanto três quartos de todas as pessoas que vivem com HIV têm acesso ao tratamento antirretroviral, ainda há aproximadamente 10 milhões de pessoas sem acesso aos medicamentos.
“O parceiro sexual mais seguro é o que tem o HIV e está com ele sob controle pelo tratamento antirretroviral porque a chance de ele transmitir é virtualmente zero”, explica o infectologista. “A pessoa que não tem o HIV pode se infectar no curso de uma relação e, na fase aguda, tem chance considerável de transmitir o vírus.” Apenas metade (52%) das crianças que vivem com HIV em todo o mundo têm acesso a medicamentos que salvam vidas. A lacuna na cobertura do tratamento entre crianças e adultos está aumentando em vez de diminuir.
Segundo o UNAids, acabar com a Aids custará menos dinheiro do que não acabar com ela. E os avanços podem preparar melhor o mundo para se proteger contra as ameaças de futuras pandemias.
FolhaPress