*Renato Benvindo Frata
A mesa da sala era elástica. Quando se precisava abrigar mais pessoas, puxava-se as extremidades e entre ambas se adicionava uma prancha, encaixando-a, fazendo maior a área de uso. Cadeiras eram colocadas em seis nos lados maiores e duas em cada ponta, e ela permaneceu ali até ser substituída, nos fins dos anos 60 por um jogo de sofá, receita dos americanos que diziam que sala não era para mesa grande, mas, mesinha de centro, e ela foi transferida à cozinha sujeitando-se à fumaça e de coberta por toalhas de sacos de açúcar amaciados e alvejados, que tão bem nossa mãe cosia. Virou mesa de cozinha com os maus tratos que essas sofrem.
Enquanto esteve na sala servia de apoio às nossas lições de casa, aos bordados das irmãs e aos papéis do pai no controle das vendas e recebimentos, quando relatava o trabalho para o patrão. Mas servia, em especial, para recepcionar seus amigos nas sessões de estudo do comunismo. Meu pai se achava comunista, mas veja que contraste: votava em Adhemar de Barros! Era ademarista, e trabalhava para outro capitalista: vendia cadernos da antiga Tipografia e Livraria Brasil, hoje a conhecida Tilibra. Por isso prestava contas do que vendia e recebia. E a vida seguia seu ritmo.
Nessas reuniões com homens aboletados ao redor dela, as mulheres iam para a cozinha e minha mãe fritava bolinhos. Mas o fato é que brincávamos de ouvir o que falavam, porque bisbilhotar era uma coisa gostosa de dividir entre amigos.
Para dizer que meu pai, leitor assíduo, decorara o ‘Manifesto Comunista’ de Leon Trotsky, e o mantinha junto aos volumes dO Capital, em alemão e não lido, na mesma gaveta, e se punha a dizer da perfeição do plano concebido por Marx e Enguels, para transformar a humanidade com o término das diferenças sociais, dos menosprezos aos pobres e dos defeitos do capitalismo, quando os incentivava a colaborarem para que o Estado se fortalecesse em prol das massas proletárias.
Eles assentiam com ele pontuando aqui e ali; mas tudo, porém, não passava de vozes esparsas perdidas nos ecos, já que a eles, reles trabalhadores como o que discursava e que penava a quase suportar as despesas com aluguel, alimentação, vestimenta, material escolar, farmácia, restava sonhar com o mundo pintado no “Manifesto”; e não imaginaria que a sua leitura seria proibida, passando a ser perseguido e caçado (com ç) por agentes do regime de 64.
A mesa? Bem, foi apressadamente posta num caminhão com o resto da mobília e minha mãe, de posse dos livros e do “Manifesto” em meio à afobação, acendeu pela última vez o fumarento fogão queimando os loucos sonhos do pai junto às boas lembranças das pessoas que ali deixava, para sair às escondidas com ela limpando as mãos no velho avental, gesto último de um “adeus para não mais”.