*Andre Franco
Heitor chegou cedo. Na verdade, não queria uma consulta, nem um tratamento, mas somente um aconselhamento, embora isto não era previsto na tabela de valores. Em uma manhã nublada, daquelas que o céu parece hesitante, descontente, indeciso, Heitor vestia uma camisa azul-marinho levemente amassada, barba por fazer, descontente, olhos cansados e inseguros. Sua expressão carregava a marca de uma antiga inquietação, agora pulsante: a ideia de partir, dar adeus a sua insegurança, mudar de país. Então, acomodou-se na poltrona da famosa Clínica do Dr. Thomaz, como se estivesse diante de um juiz togado, não daqueles que amedronta, que tudo faz, de capa preta, mas daquele que sintetiza a razão, que tenta compreender e direcionar seu próprio veredito emocional.
– “Dr. Thomaz, estou pensando em deixar o país”, declarou, como se estivesse amadurecendo uma decisão que ainda não estava pronta, mas buscava ser legitimada.
O terapeuta, homem conhecido pela paciência, fala mansa e escuta atenta, permaneceu em silêncio aguardando algo mais. Sabia que, às vezes, o silêncio é a única maneira de aguardar pelo que talvez não seria dito.
– “Estou com medo! Olho ao redor e vejo uma economia cambaleando, uma Justiça se contorcendo adormecida, políticos tratando o país com descaso, preocupados com si próprios… Tudo parece que pode desabar a qualquer momento. Estou cansado. Exausto da apreensão! Talvez no Canadá… ou em Portugal. Dizem que lá as coisas funcionam.”
Dr. Thomaz simplesmente observou. Aguardou com a paciência de quem junta latinha. Heitor continuou, como se extravasar seus sentimentos fosse uma forma de se curar.
– “E em meio a tudo isso, me pego relembrando a minha infância… e aí fico ainda mais confuso. Porque tem coisas que só vivi aqui. Lembro do Seu Zé, o pipoqueiro que vendia sonhos na frente do colégio e fazia fiado ‘para os clientes de confiança’. Da merenda da escola, com enormes filas de colegas e brincadeiras, do café da minha avó, moído na hora, em uma demonstração de força, e passado com filtro de pano. Carnaval de clube e de rua com turma de amigos e fantasias engraçadas. Ver o Brasil jogar em dias de Copa do Mundo, quando até os Bancos fechavam mais cedo. Isso é o Brasil. Isso é a minha casa.”
Dr. Thomaz sorriu quase imperceptivelmente, percebendo que apesar de oculto, ainda sabemos dar valor às coisas que importam.
– “É intrigante, Heitor, como as memórias revelam o está marcado. Veja que você não se lembra de contas, de filas do INSS ou da última reforma tributária. Você só se lembra da alma do país.” – disse Dr. Thomaz.
– “Mas, doutor, e os problemas? Não posso varrer para baixo do tapete”.
O médico, ponderado e conhecedor dos melhores conselhos, conclui:
– “Heitor, problemas existem em todos os lugares. No Canadá, você pode sentir falta do calor humano. Em Portugal, você pode estranhar o excesso de regras, a distância entre as pessoas. Na Alemanha, o silêncio pode ser ensurdecedor. Na Irlanda, o frio e a beleza bucólica contrastam com a frieza e a solidão. Cada lugar tem suas sombras. Mas o Brasil, apesar de todos os tropeços, tem sua luz própria e única. Aqui, há uma criatividade que transforma a escassez em arte. Um carinho que se traduz em um abraço antes mesmo de um cumprimento. Um povo que, mesmo agredido, dança, que aprendeu fazer piada da própria tragédia.”
Heitor silenciou, olhando a cidade pela janela da clínica. Lembrou-se das vezes em que o ônibus atrasou, mas o cobrador o recebeu com um sorriso. Das vezes que pulou o muro da escola para matar aula. Notou que nos momentos em que perdeu a fé no país, sempre encontrou força em sua história, sendo revigorado por uma conversa de bar, um encontro para um café na lanchonete ou um estranho na fila do banco dizendo: ‘siga firme, irmão’.
Então disse:
– “Sabe, doutor, talvez o que mais me dói não seja o país. É o medo de desistir dele e de tudo.”
– “Mas você não precisa desistir. Você pode reconsiderar como quer viver. Nele ou fora dele — mas por escolha, não por fuga. O Brasil é cheio de defeitos, sim. Mas é ainda mais cheio de pessoas gentis, comida que cura, música que acalma e histórias que não cabem em nenhum outro lugar do mundo. Aqui vivemos!!!
Heitor respirou fundo. Pela primeira vez, o peso em seu peito pareceu compartilhado com alguém — ou talvez dissolvido na esperança.
– “Então, você acha que eu deveria ficar?”- perguntou Heitor.
– “Acho que você deveria ficar onde vc encontra paz. Mas lembre-se: o Brasil é um lugar caótico e cheio de poesia. E se você aprender a ler nas entrelinhas, poderá descobrir que o melhor lugar do mundo, apesar de tudo… ainda é aqui.”
Lá fora, o céu estava clareando com o benção do sol. Parecia que até ele, de alguma forma, havia entendido o que poucos sabem: – não há no mundo lugar melhor que aqui!