Thaïs de Mendonça
O presidente da República convoca seus correligionários a integrar, num só coro, a defesa da nação e da família brasileira. “Que cada cidadão tenha liberdade de ir e vir e de fazer o que quiser”, proclama. Ele também invoca “o patriotismo na defesa de nossos símbolos nacionais e “a convicção quanto ao que o Brasil representou e representa na comunidade dos povos desenvolvidos neste planeta”.
Este poderia ser o discurso do presidente Jair Messias Bolsonaro. Como poderia ser o dos ex-presidentes Fernando Collor de Mello, Getúlio Vargas, Luís Inácio Lula da Silva. Quando um líder populista tem perfil semelhante a Mussolini, Salazar, Hitler, Francisco Franco ou Nicolás Maduro, a fala adquire um tom quase idêntico, profético e ao mesmo tempo simples, não só nas palavras, como no tom e no imaginário que desata no seio da população.
Este personagem sincrético, que se entrega à sua missão como um deus – Bolsonaro tem e ostenta o Messias do nome – e, durante a campanha presidencial alegou ser um outsider na política, afirma ter físico de desportista, ser religioso e bom pai de família existe em carne e osso? Também faz parte do modelito a escolha de um adversário – específico, nomeado, de preferência – a fim de canalizar a esse lado as energias negativas e poder posar como a encarnação do bem. É a famosa teoria do bode expiatório, aquele em que os judeus no deserto depositavam suas pragas.
No entanto, a figura que em tudo se parece com o tempo que estamos vivendo é um personagem de ficção. Trata-se de um herói do romance “A vida em primeira pessoa”, recém-lançado pela editora Desconcertos. Nelson Bastos foi criado para concretizar o “salvador da pátria”, que foi tema de novela e, de tempos em tempos surge como mágica na história de muitos povos e culturas, desde a França de Pinet até Antônio Conselheiro em Canudos e Dom Sebastião em Portugal.
Num cenário tal em que cada um representa um papel – o presidente eleito ou ungido; o personagem trabalhado pelos marqueteiros ou pelas redes sociais; a sociedade órfã, carente de uma liderança – a mídia também tem um lugar. Ela deve atuar no sistema de pesos e balanços que esclarece, informa, abre caminhos, fiscaliza o Executivo, o Legislativo e o Judiciário e, junto com representantes da sociedade civil, deve ampliar a visão das pessoas e aumentar a qualidade de vida no mundo em que vivemos.
A história de Nelson Bastos, no romance “A vida em primeira pessoa”, um sujeito criado para personificar um presidente eleito num país chamado Brasil, e a vida de uma jornalista fictícia, são bem o retrato de uma situação que se mostra tão cruelmente real nos tempos atuais. É uma pena que, com 45 anos de experiência sob regime democrático e uns tantos ditadores a riscar-nos a trajetória, ainda tenhamos que assistir a grosseiras cenas de ataque a instituições como a que assistimos nos últimos dias.
O Brasil tem que mostrar a sua cara. Não podemos retornar ao “homem cordial” de Sergio Buarque de Hollanda, devemos abandonar esse artifício irracional, essa passividade de Macunaíma, essa vontade de agradar e de estar constantemente despertando afetos — ardis psicológicos encrustados em nossas raízes. É preciso ir à luta, seja escrevendo um livro, seja escrevendo uma canção, seja saindo às ruas para protestar.
O Nelson Bastos da história política brasileira precisa ser revelado, desvendado, desmascarado, para que não mais apareça como símbolo de heroísmo a uma população carente de educação, de cultura, de consciência política. Uma sociedade que não se contente em ter um líder que apela a emoções baratas que estimulam o ódio, o medo; a vontade de possuir, de um lado, e de destruir, de outro.
Que as pessoas não se preocupem com o outro apenas quando o outro é um espelho de si mesmos; que, por conseguinte, respeitem o diverso, o diferente e saibam integrar sem condenar, compartilhar sem excluir, chamar ao invés de dispersar.