ISABELA PALHARES
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Após temor de ingerência, o primeiro dia de provas do Enem 2021 neste domingo (21) teve questões que abordaram minorias e direitos humanos. Uma das perguntas trouxe a música “Admirável Gado Novo”, do cantor Zé Ramalho, para tratar da exclusão de trabalhadores.
A análise de professores é de que a prova não veio com a “cara do governo”, como disse o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), e abordou assuntos que incomodam a base de apoio conservadora do presidente. As perguntas discutiram desigualdade de gênero, o conceito de minorias, racismo, população carcerária e exploração de terras indígenas.
Mesmo com a presença de temas atacados por Bolsonaro, os professores destacam mais uma vez a ausência de questões sobre a ditadura militar (1964-1985). Desde o início do mandato de Bolsonaro, o período, parte do conteúdo obrigatório do ensino médio, não foi mais cobrado no Enem.
A Folha mostrou que o presidente pediu ao ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, para que eventuais questões sobre o golpe militar de 1964 o tratassem como uma revolução, o que não aconteceu na edição deste ano.
“Surpreendentemente, a prova foi muito equilibrada e manteve o padrão, sendo extremamente social. Ainda que a ditadura militar não tenha sido abordada, outros períodos e temas importantes estiveram presentes”, diz o professor de história Guilherme Freitas, da escola Seb Lafaiete.
Às vésperas da realização do Enem, servidores do Inep, órgão responsável pela elaboração da prova, fizeram uma série de denúncias sobre o assédio moral que sofreram para suprimir perguntas com temas considerados inadequados pela gestão do órgão.
As equipes detalharam pressão para alterar ao menos 20 questões de uma primeira versão da prova deste ano. Parte delas voltou à prova para manter a calibração de dificuldade do exame. Os servidores relatam ter conseguido resistir à ingerência ao justificar a necessidade de manter o atendimento à matriz de conteúdos do Enem e a coerência estatística do exame.
“O pedagógico prevaleceu ao político e os estudantes receberam uma boa prova, como em anos anteriores. Ainda que se destaque a ausência de questões sobre a ditadura, é louvável a presença de itens sobre a questão indígena”, diz Fernando Santos, do cursinho Poliedro. Ao menos duas questões abordaram esse tema –uma delas tratava da ameaça de mineradoras a áreas de reserva indígena.
Os professores também destacaram a pertinência das músicas selecionadas como texto de apoio para perguntas. A questão com a música de Ramalho pedia ao candidato que relacionasse um trecho da letra da canção à passividade social.
A música “Comportamento Geral”, de Gonzaguinha, foi usada para abordar questões sociais. Até mesmo Chico Buarque, cantor alvo de diversos ataques de Bolsonaro, teve sua música “Sinhá” citada em uma questão sobre escravidão e racismo.
“Apesar das polêmicas recentes, alguns temas resistiram e foram abordados na prova. Não houve nenhuma menção ao grupo LGBTQIA+, mas as questões falaram sobre indígenas, quilombolas, discriminação às mulheres, racismo”, disse Gabryel Real, gerente de processos avaliativos da SAS Plataforma de Educação.
A prova também trouxe questões sobre a desigualdade de gênero. Um dos itens falou das dificuldades de mulheres cientistas no século 19 diante da exclusão que sofriam com a sociedade patriarcal.
Outro item falou sobre a erotização de corpos femininos e outro trouxe uma charge do cartunista Henfil para tratar do impacto social na vida da mulher após a maternidade.
Uma das questões trouxe um texto do filósofo Gilles Deleuze para debater o conceito de minorias. Um trecho de um texto de Friedrich Engels, coautor do “Manifesto Comunista” com Karl Marx, também foi levado à prova.
“O Enem não apresentou polêmicas, mas dialogou com temas importantes da atualidade e manteve o padrão de dificuldade, com questões bem equilibradas”, diz Daniel Perry, diretor do Curso Anglo.
O tema da redação também foi elogiado pelos educadores por ter mantido o padrão de anos anteriores ao abordar assunto relacionado aos direitos humanos. Os candidatos tiveram que fazer uma dissertação sobre a “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”.
Thiago Braga, autor de língua portuguesa do Sistema de Ensino pH, diz ser satisfatório que a redação proponha esse tipo de discussão. “É um tema bastante pertinente já que muitas pessoas no país ainda não conseguem ter acesso a registro civil, um direito tão básico, mas que não é garantido a todos. É uma excelente discussão para ser proposta à juventude do Brasil.”
Maria Aparecida Custódio, professora do laboratório de redação do Objetivo, diz que o tema é de extrema relevância, já que o Brasil ainda tem milhares de crianças nascem e ficam sem registro civil. “Esse é um direito primário e imprescindível para que a pessoa possa obter outros direitos e exercer sua cidadania.”
O primeiro dia de prova do Enem 2021 teve 26% de abstenção (808 mil) dos 3,1 milhões de inscritos. O exame continua no próximo domingo (28), quando os candidatos fazem as provas de matemática e ciências da natureza.
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