*Daniel Medeiros
Gilberto Gil estava preso e não sabia que aquela saudação dos guardas para ele era um bordão do personagem Lilico, um sucesso da televisão. Mas ele achava simpático, gostava, embora não deixasse de anotar o aspecto irônico da coisa. “Aquele abraço, Gil”, diziam seus repressores, que lhe tiraram a liberdade porque ele e Caetano tinham defendido a liberdade.
Aliás, aquele tempo, visto à distância, tinha mesmo um quê de patético: homens sisudos, apertados em uniformes oliva ou cáqui, acreditando resgatar o país de sua perdição que não passava, para a imensa maioria dos jovens daquela época, de desejo e busca de liberdade, essa coisa leve, sem lenço e sem documento, como já destacara Caetano na canção de um ano antes. Não foi à toa que o AI-5, que escancarou de vez a ditadura, teve como mote o discurso do jovem deputado Márcio Moreira Alves, solicitando às namoradas dos cadetes para deixá-los na mão, numa paródia meio sacana da peça grega Lisístrata, comédia encenada em homenagem ao deus Dionísio.
Era muita alegria e muita galhofa pra compreensão daqueles homens com braços fortes de flexões diárias e cérebros contidos por doutrinas e regras e proibições. Não foi à toa que na reunião que decidiu o AI-5, em uma sexta feira treze, os ânimos estavam exaltados e perdigotos eram lançados para todos os lados, maculando mangas de fardas que continham mãos crispadas de fúria e excitação negada. “Aos escrúpulos com a consciência”, vociferou Jarbas Passarinho, apoiando o Ato Cinco que prendeu, fechou, censurou e, principalmente, deu ao guarda da esquina poderes imensuráveis para usar ratos, cobras, fios descapados, pau de arara, cadeira do dragão, tudo o que permitisse esvaziar o peito dos homens fardados de tanto ressentimento e incompreensão.
Caetano, o eterno amigo de Gil, ficou tão triste na solidão do cárcere que só se consolava com a lembrança do sorriso da irmã Irene, que ria de maneira frouxa sem pedir licença a cada graça, gracinha, galhofa, chiste, paródia, história de menor valor, pelo prazer mesmo que a risada dá. Sabe-se que os guardas da esquina, que agora se aboletavam nos porões das instalações militares para torturar os “inimigos da Pátria”, também riam com as caras e bocas dos que penavam seus males por terem querido escavar o asfalto em busca da praia. Mas o riso dos soldados era um riso feio, grosso, forçado, como quem pragueja. Não há graça onde o que é mais caro padece e morre.
Gil saiu da prisão, mas as perseguições eram tantas que ele teve de ir embora para outro lugar distante do calor de Salvador, da magia do Rio de Janeiro. E deixou uma canção para os que ficavam: “Aquele abraço”. Não ia pra esquecer nada, mas para esperar. E continuar aprendendo: “meu caminho pelo mundo, eu mesmo faço”, diz a letra da canção de exílio, sem sabiás, mas já com imensa saudade da banda de Ipanema.
Gil está vivo e é reverenciado. Caetano ainda faz das suas, emocionando por onde canta. Do tal Passarinho sem escrúpulos, quem conhece, quem se lembra? Do guarda da esquina e sua risada feia, quem acredita que ele um dia foi mau porque realmente achava que defendia um bem?
Esses dias vi o show do Emicida, AmarElo, e fiquei dizendo baixinho, na sala, já bem de madrugada: “evoé, novos artistas, aquele abraço!”