*Ricardo Lazzari Mendes
O novo marco legal do saneamento completa dois anos em julho com a promessa de saldar uma dívida histórica, principalmente com a população brasileira mais pobre. A Lei no 14.026/2020 traz como principal meta para os municípios o atendimento de 99% da população com o abastecimento de água potável e de 90% dos brasileiros com coleta e tratamento de esgoto até 2033. Ainda hoje, 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e outras 100 milhões convivem em condições precárias de esgotamento sanitário.
Considerada o patinho feio na infraestrutura, a área de saneamento básico vem atraindo o apetite da iniciativa privada. Os nove leilões realizados no período sob a chancela do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) alcançaram R$ 42 bilhões de investimentos e R$ 30 bilhões em outorgas para os cofres de estados e municípios, beneficiando 17,6 milhões de pessoas.
A regionalização do saneamento foi um dos instrumentos de políticas públicas introduzidas no novo marco legal para dar sustentabilidade ao avanço dos empreendimentos do setor. A prestação integrada de serviços de municípios resgata uma demanda apontada desde a década de 70 com a proposição de ampliação de escala e potencial de benefícios cruzados.
Diante dos baixos números de atendimento de cobertura e qualidade de serviços insatisfatória frente aos anseios da população, o novo marco abre oportunidades reais para melhoria dos operadores, redesenho da abrangência das empresas estaduais e rearranjo dos municípios de pequeno porte economicamente inviáveis, para que conquistem padrões dos operadores eficientes.
O recente sucesso dos leilões de concessões realizados é resultado deste novo momento legal, que aumenta as garantias jurídicas de aplicação de recursos privados ampliando a viabilidade econômico-financeira desses empreendimentos.
É fato que algumas capitais e grandes municípios brasileiros ainda não aceitaram participar de blocos regionais, impedindo a implantação do modelo em diversas localidades. Vê-se em São Paulo e Minas Gerais movimentos para a readequação das propostas de regionalização que pretendem tornar-se mais atrativas a estes municípios.
O alcance das metas do novo marco legal requer ainda investimentos na ordem de R$ 750 bilhões até 2033, sendo R$ 498 bilhões para a expansão da infraestrutura de distribuição de água e coleta e tratamento de esgoto, além de R$ 255 bilhões para recuperar estações, sistemas de abastecimento e esgoto, entre outros empreendimentos já existentes. Portanto, são cerca de R$ 70 bilhões anuais, que ainda não conseguimos alcançar, mesmo com a aceleração das concessões nesses dois primeiros anos. De acordo com as projeções do Ministério da Economia, os empreendimentos do setor devem criar 700 mil empregos no país, abrindo oportunidades de trabalho em todas as regiões brasileiras. Já as encomendas de máquinas e equipamentos para a indústria podem superar R$ 140 bilhões nos próximos anos.
A segurança jurídica é outro requisito para a atração de investimentos a longo prazo, uma das características do setor. Mesmo após dois anos da aprovação do novo marco, os municípios ainda aguardam definições importantes capazes de ditar o ritmo do avanço do saneamento. Entre as novas atribuições, conforme a Lei 14.026/2020, a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento) passou a ser responsável pela instituição de normas de referência nacionais para a regulação da prestação de serviço público de saneamento básico. Mas só foi no início de 2022 que a agência iniciou os debates sobre indenização de ativos para água e esgoto e padrões de indicadores de qualidade e eficiência, além da avaliação da eficiência e eficácia para abastecimento e esgotamento sanitário. A agenda da ANA termina apenas no segundo semestre de 2023, com o estabelecimento de seis normas como padronização dos contratos de concessão para água e esgoto e procedimentos para comprovação da adoção de normas de referência, entre outros temas. Conforme já diz o ditado popular, “é como trocar o pneu com o carro andando”.
Um novo instrumento para a gestão dos resíduos sólidos foi outro importante avanço do novo marco. Assim como ocorre com o abastecimento de água e esgotamento sanitário, os municípios podem estabelecer consórcios para colocar um fim aos lixões, que resistem de Norte a Sul do país. Mas, apesar da obrigatoriedade de os municípios implantarem uma cobrança pelo serviço, permitindo as cidades alcançarem a meta da Política Nacional de Resíduos Sólidos, a medida vem sendo cumprida por uma minoria de cidades. O preço político de uma decisão como essa aparece como principal barreira para a implantação da cobrança.
O setor de saneamento é um dos mais complexos da infraestrutura. Diferente do que ocorre com os setores de energia e rodoviário, por exemplo, o saneamento tem suas próprias particularidades em cada município brasileiro. O marco permite vislumbrar uma nova política, mas que ainda demanda ajustes e correções para essa importante agenda ambiental urbana, que finalmente entrou em evidência.
(*) Ricardo Lazzari Mendes, é presidente da Apecs (Associação Paulista de Empresas de Consultoria e Serviços em Saneamento e Meio Ambiente), engenheiro pela Escola de Engenharia de São Carlos da USP e doutor em engenharia hidráulica e sanitária pela Escola Politécnica da USP