JULIO WIZIACK
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O Banco Central avalia a elaboração de diretrizes para impor fiscalização às transações financeiras com criptomoedas no Brasil, como o bitcoin, e definir penalidades para conter a explosão de golpes e fraudes.
A iniciativa foi relatada pelo presidente da autoridade monetária, Roberto Campos Neto, a presidentes de bancos importantes no país, ouvidos pela Folha sob a condição de anonimato.
De acordo com os banqueiros, a proposta de regulação deve ser enviada ao Congresso ainda no primeiro trimestre. A ideia é que as regras entrem em vigor até o final deste ano.
Para isso, um projeto de lei tem de ser apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), a pedido do BC. Procurado, o órgão não quis detalhar o plano e preferiu não comentar.
Os números desse mercado no Brasil despertam a atenção das autoridades. Segundo informações da Receita repassadas ao BC, o setor movimenta cerca de R$ 130 bilhões no país ao ano.
A falta de fiscalização abre caminho para roubos e fraudes. De acordo com as Polícias Federal e Civil de São Paulo, já somaram cerca de R$ 6,5 bilhões em menos de dois anos.
A ideia, segundo relatos dos banqueiros, é enquadrar os criptoativos como “veículos de investimento”.
Dessa forma, as corretoras digitais precisariam seguir as regras dos demais fundos de investimento regulados pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e ter sede no Brasil, além de guardar registros e documentos de transações.
Hoje o setor não segue regulação. A Receita atualmente apenas monitora transações financeiras de corretoras com sede no Brasil, e a instrução normativa do Fisco se aplica para fins tributários.
Embora o BC cogite lançar uma moeda digital (o real digital), não está na mesa no momento permitir que criptomoedas sejam usadas como meio de pagamento. Essa medida vigora em poucos países, como El Salvador.
Além de dar plenos poderes ao BC para conceder autorização de funcionamento para empresas do ramo, a ideia do projeto de lei também é atualizar o Código Penal criando o “estelionato com moedas virtuais”. A pena de prisão deve variar entre quatro e oito anos.
O BC também quer atualizar a Lei de Lavagem de Dinheiro, incluindo as fraudes com criptoativos na lista de crimes com agravante de pena –entre um terço e dois terços a mais da pena de reclusão de três a dez anos.
Todas as transações realizadas ainda terão de ser registradas e os documentos mantidos em arquivos caso sejam solicitados por autoridades policiais ou judiciais.
Para o advogado Fabio Braga, sócio do Demarest, uma legislação com diretrizes para esse mercado, com definição de competências de órgãos como BC e CVM, aumentaria a segurança do investidor.
“Isso porque passa a ser possível identificar e segregar provedores de produtos e serviços de boa e má qualidade técnica e operacional, com maior transparência e accountability”, afirmou Braga.
Casos recentes ilustram a necessidade da medida proposta pelo BC. O Santander, por exemplo, foi à Justiça contra a Binance, maior corretora de criptomoedas do mundo e líder no Brasil.
O banco acusou a empresa de dificultar de maneira maliciosa a investigação de um desvio de cerca de R$ 30 milhões de uma conta bancária da Gerdau.
De acordo com o processo a que a Folha teve acesso, a Binance argumentou “incapacidade técnica” para apresentar um relatório contendo a identificação dos responsáveis por carteiras digitais mantidas pela corretora que serviram de destino para parte do dinheiro supostamente roubado, em abril de 2020.
O Santander recorreu e, sete meses depois, a Binance perdeu. Embora a corretora tenha afirmado não estar apta tecnicamente para fornecer os dados, apresentou as informações menos de duas horas após a decisão judicial.
Com sede em Malta, a Binance é considerada irregular em diversos países exatamente por não ter um endereço físico real e atuar sem aval de órgãos reguladores.
No Brasil, seu fundador, o chinês Changpeng Zhao, registrou na Receita a B.Fintech, braço da Binance no país, com telefone e email falsos, segundo um documento do Fisco a que a Folha teve acesso. A Binance já recebeu ordem da CVM para que não opere valores mobiliários no país.
Em nota, a Binance afirmou que tem colaborado com as autoridades ao atender pedidos de informações e esclarecimentos, além de dizer reafirmar compromisso com a Justiça brasileira. “Segurança é a prioridade número um na Binance”, disse a empresa.
A companhia afirmou ainda que a ação movida pelo Santander está em curso. “O processo traz alegações que ainda não foram comprovadas e, até o momento, não houve trânsito em julgado.”
Gerdau e Santander não quiseram comentar.
A invisibilidade jurídica das corretoras de criptomoedas dá abertura para que companhias do gênero desviem de cobranças judiciais e regulatórias.
É o caso da Atlas Quantum, detentora de cerca de 15 mil bitcoins de mais de 200 mil clientes no mundo.
A corretora negociou R$ 4 bilhões em contratos de investimento coletivo sem autorização, segundo a CVM. No Brasil, os clientes tentam, sem sucesso, sacar o dinheiro desde 2019.
Em julho de 2021, a BWA Brasil, acusada de aplicar golpes com bitcoins, causou um prejuízo de quase R$ 300 milhões após fechar as portas sem ressarcir os investidores. Ao pedir recuperação judicial, a empresa elaborou uma relação de 1.897 credores que perderam dinheiro após o investimento.
Quase um mês depois, a PF deflagrou uma operação contra a corretora G.A.S. Na ocasião, Glaidson Acácio dos Santos, conhecido como o “faraó do bitcoin”, foi preso.
Ele é acusado de usar criptomoedas para atrair investidores que sustentaram um bilionário esquema de pirâmide financeira. Os desvios chegaram a R$ 1,5 bilhão, segundo a PF. Procuradas, Atlas Quantum, BWA e G.A.S. não responderam.
Pesquisa recente feita pela CVM mostra que os estelionatos com criptomoedas já respondem por 43% do total dos golpes financeiros no país. Quase um terço (30%) dos casos foi de operações com moedas digitais estrangeiras e um quarto dos investidores aplicou entre R$ 10 mil e R$ 50 mil.
A massificação desses investimentos vem ocorrendo basicamente na propaganda “boca a boca” ou por indicações via redes sociais, ainda segundo a pesquisa, o que deixou os diretores do BC preocupados.
Essa situação levou Campos Neto a pedir que técnicos da autarquia preparassem o projeto de lei com as diretrizes para a regulamentação do mercado de criptoativos –moedas e outros tipos de investimento por meio digital.
Nas conversas com os executivos de bancos ouvidos pela Folha, Campos Neto disse que, no ano passado, os investimentos em criptoativos –os bitcoins são a modalidade mais procurada– foram os que mais atraíram investidores no país com promessas de rentabilidade muito acima da média do mercado de capitais.
Outra justificativa para que o projeto de lei seja apressado é o uso cada vez mais frequente desse tipo de investimento para lavagem de dinheiro.
No Reino Unido, duas operações policiais foram deflagradas em menos de dois anos com apreensão de moedas digitais usadas para lavagem de dinheiro de organizações criminosas. Em julho de 2021, a polícia de Londres apreendeu 180 milhões de libras, o equivalente a R$ 1,2 bilhão na cotação de sexta-feira (18).
Com o envio do projeto de lei, Campos Neto quer acelerar o debate da regulação no Congresso. Desde 2015, por exemplo, já tramita uma proposta similar, aprovada na Câmara, e hoje parada no Senado.
Projetos prioritários do governo costumam ganhar velocidade. Além disso, o tema agora ganha a pressão da autoridade monetária.
US$ 3 bilhões Foi o valor total desviado por hackers em 32 casos de roubo envolvendo moedas digitais
O que o BC planeja fazer?
Enviar um projeto de lei criando uma regulação para criptoativos como veículos de investimento. Passariam a ser enquadrados como qualquer tipo de aplicação. As consultorias ou empresas passariam a ser obrigadas a ter escritório no país e prestar contas.
Existe algum plano de que o bitcoin se torne meio de pagamento?
Não no momento. O BC pretende primeiro regular as criptomoedas como investimento. Embora o regulador avalie a criação do real digital, o uso das demais criptomoedas como meios de pagamento não está nos planos de curto prazo.
Fonte: BC, Congresso Nacional, CVM, Crypto Head.
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