A Bíblia ocupa um lugar central tanto na vida como nos escritos, a ponto de se poder dizer que todos eles tinham, por assim dizer um instinto bíblico.
Apesar de limitados no uso e no acesso à Bíblia, a vida dos santos e santas do Carmelo era bíblica, isto é, era como que uma encarnação e uma amostra do objetivo que a Palavra de Deus quer alcançar na vida das pessoas. Como, aliás, hoje se verifica na vida de tanta gente boa que vive sem saber ler ou sem conhecer muito da Bíblia. A Palavra de Deus tem uma centralidade tão grande na vida dos santos e santas do Carmelo que ela se tornou o eixo de suas existências.
A própria Regra do Carmo, apesar de curta tem mais de cem citações e evocações da Bíblia. Os escritos de João da Cruz são como uma citação contínua da Sagrada Escritura. Santa Teresa de Ávila tira da Palavra de Deus a luz e a força para a sua vida. Santa Teresa de Lisieux confessa que determinados momentos da vida só o Evangelho lhe servia de alimento.
Eles lêem a Bíblia a partir de sua própria experiência humana e cristã, a qual se torna para eles chave de leitura e porta de entrada para a Bíblia. A leitura que fazem é esponsal ou filial.
Há neles algo anterior à leitura que fazem da Bíblia e que marca e influência radicalmente. É a experiência humana e cristã que eles e elas têm de Deus e da vida. É a amizade e a união com Deus. Essa experiência, estando nos olhos, fazia-os descobrir na Bíblia sentidos que pessoas que não tinham essa experiência não conseguiam descobrir. É como duas pessoas olhando a fotografia de um rapaz. Uma delas é a namorada do rapaz, a outra é simplesmente uma conhecida. As duas descobrem na fotografia sentidos bem diferentes e têm sentimentos distintos. A diferença vem da experiência anterior de cada uma com relação ao jovem. Assim a experiência de intimidade com Deus criava nos santos e santas uma familiaridade com a Palavra de Deus que ia muito além das possibilidades da pesquisa literária e histórica, fazendo-os descobrir nela sentidos novos e perceber melhor seu alcance para a vida.
A Bíblia é para eles e elas como uma luz que os ajuda a entender e a iluminar os próprios processos e experiências espirituais. Sua leitura é sapiencial e iluminadora.
Não era só a experiência humana e cristã de Deus e da vida que os ajudava a entenderem melhor o sentido da Bíblia. Também acontecia o contrário. A Bíblia era para eles e elas como uma luz que os ajudava a entender e a iluminarem melhor os próprios processos e experiências espirituais. Era vista como experiência modelo do relacionamento do ser humano com Deus, ajudando-os a perceber que as ausências de Deus e as experiências dolorosas da vida faziam parte da caminhada. É como Jesus no caminho de Emaús: Ele usa a Bíblia para mostrar que a experiência da cruz fazia parte das previsões proféticas e, portanto, não devia ser motivo para perder a esperança.
Dessa mútua iluminação entre a Bíblia e a experiência de Deus na vida, nasceu uma das coisas mais bonitas que encontramos nos escritos de nossos santos e santas. A Bíblia lhes oferecia categorias e palavras que lhes permitiam expressar e descrever seus próprios processos e experiências de fé. Eles usam palavras, esquemas e imagens bíblicas para expressar e descreverem o que vivem. Por exemplo, a própria Regra de Santo Alberto é uma longa citação da Bíblia. Ela propõe um ideal de vida usando como esquema básico a vida dos primeiros cristãos tal como descrita nos Atos dos Apóstolos. Muitas vezes não dá para saber se a Regra está citando a Bíblia ou se está expressando suas próprias idéias.
João da Cruz tem presente a saída do Egito quando descreve a Subida do Monte Carmelo, tem presente a noite do exílio quando descreve a Noite Escura, tem presente o Cântico dos Cânticos ao descrever a União da Alma com Deus. Assim o Carmelita tem a sua origem na Palavra e vive da Palavra: “Meditar dia e noite a Palavra do Senhor.”
Vale a pena citar aqui as palavras de um camponês do interior da Paraíba, ao contar sua experiência na Escola Bíblica: “Quando eu fui começando essa caminhada aqui na Escola Bíblica, fui vendo e sentindo que a Bíblia não é brincadeira. Que ela exige muito da gente. Exige que A GENTE VIVA O QUE A GENTE OUVE, LÊ VAI APRENDENDO. Aí eu achei que não ia agüentar a barra. Eu pensei em deixar a Escola Bíblica. Agüentei mais um pouco e aí FUI NOTANDO QUE, SE A GENTE VAI DEIXANDO A PALAVRA DE DEUS ENTRAR DENTRO DA GENTE, A GENTE VAI SE DIVINIZANDO. ASSIM ELA VAI TOMANDO CONTA DA GENTE E A GENTE NÃO CONSEGUE MAIS SEPARAR O QUE É DEUS O QUE É DA GENTE. NEM SABE MUITO BEM O QUE É PALAVRA DELE E O QUE É PALAVRA DA GENTE. A Bíblia fez isso em mim. Aí eu não consegui deixar a Escola Bíblica” (Por trás da Palavra 46 1988 \ 28). Nessas palavras tão simples está descrito o processo da Lectio Divina. SABOREAR A DOÇURA (EXIGENTE) DO SENHOR E DESFRUTAR A ALEGRIA DE SUA PRESENÇA é o que acontece na vida dos santos e santas carmelitas e na vida desse agricultor. Como ele, há muitos milhares.