Terceira sugestão: caminhar nas pegadas de Jesus exige entrar num combate espiritual com o leão rugidor do mercado. No que poderia consistir esse combate espiritual? Proponho três elementos: os votos, o silêncio-solidão-oração e a comunidade.
A pobreza, a castidade e a obediência são em si posturas contraculturais. Elas se opõem ao modo de produção, pois seu propósito é a humanização e a liberdade. Liberdade frente aos poderes que nos levam aos valores da produção, da dominação e da posse, e liberdade para fortalecer os outros como pessoas. Da mesma maneira, existe uma economia nos votos. Mas eles não favorecem muito o crescimento financeiro.
Existe também uma economia no silêncio, na solidão e na oração. Eles também são financeiramente sem valor e, por isso, tornam-se uma denúncia profética do modo de produção. O silêncio e a solidão estão cheios de riscos, pois revelam nossas necessidades e nossa pobreza interior, que são fortemente negadas pelo comercialismo e materialismo do modo de produção. O silêncio e a solidão são irremediavelmente inegociáveis. A oração é um ato de interiorização que exige que nos libertemos dos padrões de comportamento normativos no modo de produção da sociedade. A oração significa estar presente diante de Deus e, por isso, a nossa verdadeira identidade como pessoas. A oração é um ataque contra a fraude dos ridículos papéis exigidos pelo modo de produção. É uma centralização no “ser”, contrário ao “ter” do modo de produção. A oração é uma anti-comercialização de nossas vidas e uma reapropriação de nossa personalidade.
O silêncio, a solidão e a oração também exercem outro papel em nossa batalha espiritual. Esses três valores tipicamente desérticos do Carmelo nos tornam atentos à gratuidade do amor de Deus em nossas vidas, nos dispõem a reconhecer que Deus está presente em todas as coisas, purificam nosso relacionamento com os outros da tendência materialista em impor uma vontade alienada a eles, e possibilitando assim um encontro real e pleno com o próximo.[i] O silêncio, a solidão e a oração são as “substâncias” que geram profetas místicos. Por “experimentar” a presença divina, o profeta (ele/ela) também pode experimentar a ausência do divino na história, no modo de produção. É essa consciência da presença divina que levou o profeta a denunciar o velho, o reino de Satã, e a anunciar o novo, o Reino de Deus. O silêncio, a solidão e a oração são a escola dos profetas de Elias.
A comunidade também é uma forma de contracultura no combate espiritual. Os primeiros eremitas do Carmelo contextualizaram seu caminhar nos passos de Jesus Cristo abraçando a visão ideal da comunidade de Jerusalém. A fórmula de vida de Alberto descreve esta visão comunitária em termos de uma partilha de bens e de vida, um estilo de vida igualitário, discernimento comunitário-dialogal e um respeito pelo indivíduo. Os eremitas dentro da própria Regra logo foram chamados de “irmãos”, chamados a trilhar uma forma participativa da vida comunitária. Esta vida comunitária é em si um protesto alternativo e profético contra o modo de produção, que materializa a pessoa através de relacionamentos dominantes e desumanizadores, com sua falta de zelo e de respeito, sua escravização da liberdade e sua idolatria da competição, do empreendimento e do controle. Por sua vez, tal vida comunitária testemunha os valores do modo interpessoal, o valor intrínseco das pessoas: a liberdade, o desprendimento, a generosidade, a justiça, a paz, o perdão, a cura, a compaixão, o fortalecimento dos menores.
A terra de Cristo ainda deve ser reconquistada. Todas as coisas ainda devem se sujeitar a ele para que seu Pai possa reinar plenamente e ser tudo em todos. Como nos dias de Alberto e dos primeiros eremitas do Carmelo, a terra será reconquistada não por armas e força mas pelo caminhar nas pegadas de Jesus Cristo. Esse obsequium Jesu Christi envolve uma batalha espiritual que, como aconteceu com o próprio Jesus, insere a pessoa na história num combate contra o leão rugidor. Caminhar nas pegadas de Jesus Cristo hoje é ser chamado à uma vida comunitária da resistência contra-cultural, enraizada no silêncio, na solidão e na oração, restabelecendo a prática profética de Jesus anunciando o Reino de Deus na solidariedade com todos. Especialmente com os pecadores, os proscritos e a ralé de nossos dias.
(tirado do texto da Ordem carmelitana: O Cristocentrismo do Carisma Carmelitano de Donald Buggert O. Carm.)