*André Maciel de Oliveira
Aquele dia amanhecera como qualquer outro ao longo daqueles quase trinta anos de casamento. Era a data que estavam comemorando 40 anos de casados. Regina estava radiante, parecia que flutuava pela cozinha, da sala para os quartos não sentia os pés no chão enquanto se aproximava da suíte, aonde havia há pouco deixado Alberto ainda descansando. Se olhara no espelho, fixara um fio do longo cabelo acinzentado que se dissipara dos outros já fixados ao topo da cabeça, como sempre prendia. Aproximou-se do espelho, olhou fixamente e agradeceu por estar chegando aos 60 anos, com a cútis tão limpa; sentiu-se uma menina, como nos primeiros anos do casamento. Foi tomada então de súbito ao recordar que havia colocado o pão na torradeira e não poderia passar do ponto que Alberto gostava, não muito claro e nem muito queimado. A ela sobravam então os mais escuros, mais queimados. Apressadamente chegou próxima à torradeira e sentiu o forte cheiro de queimado que pairava no ar. As torradas mais queimadas, que ela comia para não causar dor de estômago ao esposo, cabiam à ela. Mas naquele dia, quis inovar na preparação do café da manhã, afinal era um dia especial, estavam renovando votos de casamento, estavam completando 40 anos de feliz união conjugal. Imediatamente recordou-se de ter lido em alguma parte da revista que estava na cabeceira da cama, embaixo dos óculos, cuidadosamente dobrados para que não quebrassem ainda mais a armação que já estava se deteriorando. Lera que as esmeraldas, neste caso das bodas, representavam o renascimento e o amor infinito dos longos anos de aliança entre o casal. Sabia que como qualquer casamento duradouro precisava de ter muita estima, união e sapiência; que a pedra esmeralda representava muito esses sentimentos puros conservados na relação a dois. As palavras lidas no artigo da revista feminina flanavam em seus pensamentos, enquanto preparava a mesa. Colocou os pães torrados – os mais queimados, inadvertidamente acabou colocando no prato do esposo, os mais claros, colocou em seu prato. Duas fatias de presunto e mussarela em cada prato. Preencheu os copos com suco de laranja. Os talheres postos cada qual em seu lugar à mesa. Detalhadamente esticou o canto da toalha estampada de flores, em tons de rosa e creme que gostava tanto. Cruzou as mãos em riste próximas aos lábios, gesto que praticava quando estava em análise sobre algo, e então concluiu, pronto a mesa estava posta. As xícaras para o café puro e sem açúcar estava cada qual em seu lugar. Dirigiu-se até o quarto então, para chamar o esposo para tomar café.
Balbuciou aos ouvidos do amado que acordasse, pois o café estava posto, e aquele dia pedia um desjejum, especial.
O esposo despertou ainda sonolento, os poucos fios de cabelo, que ainda estavam no alto da cabeça, os ajeitou com as mãos em palmas. As cãs estavam denunciando sua idade avançada. Mas ele não era o tipo de sujeito que passa tinta nos cabelos. Cumprimentou a esposo que se encontrava sentada à beira da cama, e fez menção de se levantar. Prontamente Regina direcionou os chinelos dele para que os calçasse.
De mãos dadas, hábito pouco corrente entre os dois, chegaram à sala. O homem sorriu ao ver a mesa posta com tanta delicadeza e cuidado. Aproximou-se da esposa e abaixando sua cabeça, e lhe presenteou-lhe a testa com um carinhoso beijo de agradecimento. Quando as palavras não falavam, elas se manifestavam em gestos, pensava ele ajeitando a cadeira para que ela se sentasse.
Sentaram-se cada qual em seu lugar de costume, ele à cabeceira da mesa e ela a sua esquerda. Os olhos de Alberto fixaram-se às torradas em seu prato, escondidas entre as fatias de frios que a esposa preparara. Sorrateiramente sorriu mais uma vez e buscando as mãos da mulher apertou delicadamente e lhe agradeceu:
– Muito grato minha querida. Hoje de fato é uma data especial. Hoje você realizou um de meus mais esperados desejos.
A esposa sem entender o que estava ocorrendo naquele instante cerrou o sorriso que se resumiu ao canto dos lábios, formando na face aquele típico gesto de interrogação.
Percebendo que a esposa não havia entendido, então ele dissipou a dúvida que pairava na face da mulher.
– Durante todos esses 40 anos de casados, sempre desejei, por bobeira talvez, coisa minha, sabe, provar das torradas queimadas que você preparava para si. Mas como você sempre dizia que as escolhia para evitar que eu comesse e passasse mal do estômago, nunca a contrariei. Hoje talvez em comemoração a esta data você tenha me presenteado com este manjar que irei degustar tão prontamente. A frase encerrou-se com um sorriso que findava o silêncio daquele instante.
Regina, nunca perguntara a Alberto se ele de fato tinha algum problema de estômago ou se gostaria de provar da torrada mais queimada.
Havia amor, havia respeito, havia carinho e lealdade, mas talvez tivesse havido nestes 40 anos de casados, o diálogo com as pequenas coisas, que certamente acabamos deixando como corriqueiras ou sem importância.