*Zulmira Furbino
Bichos de estimação fazem cada vez mais parte do contexto familiar brasileiro. Especialistas tentam entender as transformações que permeiam a relação entre animais e seus donos
Lá se foi o tempo em que cães e gatos, os animais domésticos mais próximos do convívio humano, viviam somente no quintal das casas e morriam de velhice. Hoje, eles dormem na cama dos seus donos e sofrem de doenças que acometem o ser humano, como colesterol, diabetes, pressão alta, problemas renais e câncer. Há os que são levados a psicólogos e usam psicotrópicos para combater o estresse e a depressão. Muitos são tratados como bebês, alguns se vestem de Papai Noel no Natal, usam joias caras, ganham festas de aniversário, entre outros mimos.
O tratamento dispensado aos bichos de estimação no Brasil nunca foi tão humanizado. Por isso mesmo, nem tão polêmico. Professor de antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Jean Segata estuda a depressão canina e explica que, até chegarem ao posto de bebezinhos, lindinhos da mamãe e do papai, fiéis companheiros e de viverem nos lares das pessoas, tornando-se foco da atenção de gestos médicos e estéticos, houve um longo caminho percorrido pelos animais de estimação.
Na visão dele, desde a década de 90 essa delicada e controversa convivência vem reconfigurando as relações humanas e familiares, chegando inclusive ao campo do direito. Com isso, de lá para cá, o elo cada vez mais forte entre as pessoas e seus animais domésticos deixou de ser uma discussão exclusiva de veterinários, passando a frequentar as rodas de estudos de antropólogos, filósofos, sociólogos e psicólogos, que buscam entender as transformações sociais, culturais e biológicas causadas pelo fenômeno. A discussão passa pela ciência, pelos visíveis excessos na maneira como as pessoas humanizam os bichinhos e, claro, pelos incontestáveis benefícios que essa convivência traz para o ser humano.
Foi que ocorreu com a funcionária pública Letícia Martinez Matos, que há pouco tempo passou por depressão causada por uma grande decepção e enfrentou suas dificuldades com a ajuda de Xaxá e sua irmã Babi, dois gatinhos meio persas, meio vira-latas. “Em 2012, estava passando por uma fase muito difícil e, como não queria tomar remédios, uma amiga sugeriu que eu adotasse o Xaxá, porque achou que ele poderia ajudar a melhorar o meu astral. Foi tiro e queda. Gostei tanto que peguei a Babi também”, diz Letícia. Ela dorme com os bichanos e, às vezes, até evita se mexer na cama para não acordá-los.
Xaxá e Babi passaram o Natal do ano passado fantasiados de Papai Noel. “Às vezes, eles dão um feedback que assusta. Converso com eles e os dois entendem tudo”, diz Letícia. Ela garante que quando dá bom-dia aos dois, cada um responde com um “miau”. “Outro dia pela manhã, sem querer, pisei no rabinho da Babi. Ela ficou magoada. Saí para o trabalho e quando voltei à noite ela continuava aborrecida. Aí, perguntei se ela achava que a mamãe iria fazer isso por querer. Ela respondeu com um ‘miaaaau’ e eu disse pra ela: ‘Então…’. Aí ficou tudo bem.”
A humanização dos animais domésticos é um assunto que pode ser observado de vários pontos de vista, como um caleidoscópio de sentimentos, necessários cuidados com os bichinhos, interesses comerciais e mudanças de comportamento na sociedade brasileira. A ponte que levou os bichos de estimação da existência regrada no quintal ao reinado quase absoluto dentro da casa dos donos foi construída com uma série de iniciativas e investimentos que acalmaram as pulsões naturais do animal, explica Jean Segata, professor de antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ela está pavimentada pela necessidade cada vez maior de companhia dos seres humanos, muitos deles desacreditados em gente – e em amor de gente. Por trás disso – e sustentando tudo isso –, esconde-se a indústria pet, que percebeu na humanização dos animais domésticos uma ótima oportunidade de crescimento.
A administradora Cláudia Lauria, de 31 anos, está grávida pela primeira vez e há 11 anos tem uma cadelinha poodle chamada Aretha, com “h”, como ela mesma faz questão de frisar. “Ela é o meu bebê, a minha filha. Converso com Aretha como se ela fosse criança, ela fica no colo, tem no mínimo cinco vestidinhos, além de capa de chuva, colar, bota, sapato, chapéu, perfumes e uma coleção de laços”, explica. Segundo Cláudia, a cachorrinha adora usar esses apetrechos. “Toda vez que a gente coloca ela muda o comportamento, fica muito mais feliz”, garante. A mamãe de Aretha admite, no entanto, que exagerou na dose quando pintou a cadela de verde e a manteve assim por duas semanas. “Ela se olhava no espelho e parece que não gostou, assim como não gosta de ser tosada. Toda vez que isso ocorre, Aretha volta para casa amuada e a gente precisa ficar falando que ela está linda.”