RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS)
Início da década de 1990, o telefone de Miguel Falabella toca. Do outro lado da ligação é sua amiga Maria Carmem Barbosa. “Você viu que horror essa notícia da explosão de um botijão de gás?”, ela perguntou. E continuou: “Vamos escrever uma peça sobre isso?”.
O texto, a comédia “Querido Mundo”, foi escrito, ganhou vida nos palcos em 1993 e agora está sendo filmado, com direção do próprio Falabella e de Hsu Chien. O longa fica pronto no segundo semestre de 2024.
“Querido Mundo” acompanha a história de Elsa dona de casa de uma cidade do interior vivida por Malu Galli em seu casamento abusivo e sem perspectivas com Gilberto, interpretado por Marcello Novaes. Uma série de intempéries a leva a encontrar Oswaldo, personagem de Eduardo Moscovis, nos escombros de um prédio abandonado, às vésperas do Ano-Novo. Ali, a partir desse encontro, se desenrola o núcleo da trama.
Desenhar uma comédia a partir de uma situação a princípio triste é algo familiar a Falabella. “Minhas comédias sempre foram assim, desde A Partilha”, diz o autor e diretor. “É uma comédia porque é um filme sobre esperança. A tragédia é quando você já não tem mais esperança. A comédia ainda dá a possibilidade de transformar a vida, rir daquilo”.
Falabella conversa num cenário de tijolo e cimento cenográficos, fios pendurados, poeira e entulho pelo chão. O set montado num estúdio na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, reproduz o prédio abandonado onde se passa quase toda a ação.
Na gravação da cena acompanhada pela Folha, Elsa e Oswaldo conversam num dos quartos. A luz, assinada pelo diretor de fotografia Tulé Peake (“Tropa de Elite”, “Cidade de Deus”, “Ensaio sobre a Cegueira”), é poética e elegante, captada em preto e branco como quase todo o filme.
“A cor foi roubada da vida de Elsa e de Oswaldo”, diz Falabella, explicando sua escolha. “Uma das minhas referências para esse filme, porque tem a solidão dos personagens e a busca por uma vida melhor, é “A Última Sessão de Cinema”, do [Peter] Bogdanovich.”
Galli também cita referências para sua personagem. “Falamos muito dos dramas italianos, com essas mulheres que têm uma aparente fragilidade por levarem uma vida muito dura, mas que carregam em si uma força muito grande”, explica a atriz. “O que eu procurei compor na Elsa foi isso. Essa mulher que é capaz de se reinventar, de se abrir para o novo, mesmo depois de tanta violência”.
Na visão da atriz, mais do que atenuar o peso da história, o olhar cômico de Falabella e Maria Carmem, morta no ano passado, ajuda a iluminar sua humanidade. “Ele tem um senso de humor que leva a uma identificação pelo riso. E dessa forma ele toca nas questões mais básicas do humano: a vida, a morte, o destino, o amor, a violência Quase como uma fábula.”
O personagem de Moscovis também chega ao prédio em escombros atravessando uma via-crúcis pessoal. “Oswaldo está num momento loser”, sintetiza o ator. “Seu casamento está acabando, e a única opção de moradia dele é esse apartamento que ele comprou e não ficou pronto. Ou seja, ele foi ludibriado, como tantos brasileiros que já passaram por uma história parecida, o que é muito triste, cruel, covarde”.
Além da vida conjugal destruída, Oswaldo ainda lida com o fracasso profissional. Ele é afastado do emprego por ser o engenheiro responsável de uma obra que desabou. O cenário do prédio funciona como a metáfora descrita por Caetano Veloso na canção “Fora da Ordem”: “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”.
“Tanto meu personagem como o da Malu estão exatamente nesse lugar de transformação, de ruína, de construção, desconstrução”, defende Moscovis. “Acho lindo que o encontro dos dois se dê nessa aridez. Porque é daí que pode vir a flor, pode vir o colorido, o doce”.
“No primeiro dia aqui no cenário a gente sopra a poeira, tosse, bota máscara”, conta. “Aí os dias passam e agora a gente já faz parte disso. Eu acho que é assim com os personagens, porque a vida real vira aquilo ali. Eles não batem mais no sofá para tirar a pedrinha. Eles já sentam. É uma incorporação da ruína, da construção.”