Renato Benvindo Frata
Lembrei-me de uma professora que usava a linha do tempo para ensinar. Após os cumprimentos, com um giz percorria riscando a lousa de lado e outro, numa facilidade incrível de riscar reto. O interessante era que enquanto riscava, modulava o olhar para nós e para a lousa com um olho no gato e outro no rato, e seguia na risca com pontos em verde enquanto falava dos acontecimentos de cada época, do aparecimento do homem e sua evolução até os assuntos do dia, para que aprendêssemos sobre a passagem do tempo na formação do mundo com os problemas eternos centrados em crises sociais, guerras, conquistas, perdas, descobrimentos, invenções, que se transformaram em história.
Com ela aprendi o termo cronologia e gostei tanto da palavra que História passou a ser xodó em cujo boletim só havia notas azuis, diferentes do vermelho das demais. Jesus, como era burrinho… Ou aloprado? Não sei. Só sei que foi assim.[1]
Inventei outro dia compor a minha cronologia de vida. Sim, com uma extensão inimaginada que foi se encompridando tanto que a folha de almaço ficou pequena, e havia tantos fatos ruins a assinalar que lembrá-los fez a mão tremer, mas, como se tratava de história, mantive-me com o remorso congelado. Como ciência a história não tem sentimentos; e cada um que faça seu juízo.
À medida em que me lembrava, assinalava as datas alegres do lado de cima da linha e as tristes, com risquinhos verticais vermelhos, no lado de baixo, e fui anotando enquanto resmungava remastigando o passado até sentir que meu coração se acelerava tomado por um frio inoportuno de suor nas têmporas. Mas segui naqueles moldes na escala de cinco milímetros por ano para que, ao final, pudesse ao compará-los e sorrir ou chorar para o vivido. A história do indivíduo sempre deixa um rabo, ouvi isso em algum lugar. Daí…
Pois bem, pus-me à obra conforme as lembranças ganharam cores, até que em certo ponto, quase chegando ao agora, parei, analisei o construído e me decepcionei. Desenhara na folha um horrível e enorme rastelo de dentes vermelhos que me deixou decepcionado pelo conceito de vida que me dei. Naquela visão, eu vivera um louco prejuízo material e existencial, e não era verdade.
Passados os momentos dos porquês na bruta introspecção, no entanto, esse pensar atabalhoado foi se desfazendo e um longo respirar me trouxe à sensatez. Não, a vida nunca fora madrasta a ponto de retratá-la dentuça, o que me levou, ansioso, a reavaliar a própria avaliação e ponderar que à história-ciência nunca se acrescenta paixão, mas só razão, por isso não podia julgar se teria sido boa ou ruim, mas o todo como acontecimento, da mesma forma como ela fazia nas aulas. Os risquinhos vermelhos acangulados, pois, não eram fiéis.
E, de posse agora de uma coragem que poderia dizer dourada, com o rosto sóbrio da certeza sem as rugas que a incerteza fez brotarem, rasguei a folha em quatro. Ali não estava a minha história, mas a insensatez de um momento de fragilidade ao pontuar dificuldades como coisas extremamente más quando a vida não é isso, mesmo porque como qualquer terreno, ela tem parte com sombra e outra com sol escaldante que lhe enrijece e resseca a postura. Enquanto essa a embrutece, a outra, em temperança, a deixa aprazível.
Sorri com o resultado, afinal, a minha cronologia como a de tantos, entre seus baixios e subidas, alagados e aridez, se comparada com a de muitos agentes públicos de colarinho engomado que grassam no mando, não é das piores. Não é.
[1] Chicó – Auto da Compadecida