(Homenagem: Esse texto foi escrito pelo competente jornalista Jorge Roberto Pereira da Silva, morto em 27 de dezembro de 2023. O Diário do Noroeste resgatou essa matéria inédita e compartilha agora na íntegra com os leitores).
A matéria em vídeo foi produzida pelo jornalista Igor Mateus. Fotos: Ivan Fuquini.
Era para ser um trabalho temporário, coisa de quatro meses mais ou menos. Sua função inicial era datilografar nas máquinas de escrever da época etiquetas com endereços para as correspondências e, quando houvesse tempo, auxiliar em outros serviços administrativos.
A proposta pareceu interessante. Ela havia deixado o emprego para engravidar e ter seu filho. Essa fase já havia acabado, Nielso, o filho, já tinha seis meses, e ela se preparava para retornar ao mercado de trabalho. Aceitou o emprego, foi ficando, ficando e já se passaram 38 anos desde que pela primeira vez ela entrou na Sociedade Rural do Noroeste do Paraná, no Parque Costa e Silva, entidade responsável pelo maior evento do agronegócio regional e maior festa popular do extremo noroeste do Paraná, a Exposição Feira Agropecuária e Industrial de Paranavaí. Mais da metade de sua vida ela passou lá.
Lá se vai uma geração. Se quando começou sua carreira na entidade ruralista, tinha um filho de colo, agora, durante uma edição da ExpoParanavaí, evento que a obriga a ficar até a noite e aos finais de semana na Sociedade Rural, sua filha tem que levar o neto para ela poder vê-lo, exatamente como era quando seu casal de filhos era pequeno: a babá os levava até o trabalho para que ela pudesse vê-los e brincar um pouco com eles.
“Tudo que tenho devo a Rural. Aqui aprendi muito, tive alegrias e tristezas, momentos de felicidades, de muita emoção e, infelizmente, também algumas decepções e dor. Mas se colocar tudo na balança, o saldo é bastante positivo”, diz esta morena simpática, que, mesmo nos momentos de maior tumulto, consegue manter a calma e atende duas, três ou mais pessoas quase que simultaneamente com a mesma educação, seja ele um grande produtor ou um trabalhador braçal do parque.
Seu nome? Jalmira Lobo. Mas como não é um nome comum, muitos têm dificuldades de memorizar e aí ela vira Jumira, Jucira, Djalmira, Janira, Djanira Jandira, João Mira e uma infinidade de variações. Ou simplesmente “a moreninha de cabelo enrolado”. Mas ela não se incomoda. Já está acostumada. E independente do nome pela qual é chamada, atende a todos com a mesma simpatia e educação.
VIDA DIFÍCIL – Jalmira não teve uma infância fácil. Ao contrário, foi de muitas dificuldades. Morava as margens da BR-376, ao lado do Posto da Polícia Rodoviária Estadual, que depois foi utilizado pela Polícia Rodoviária Federal (a edificação não existe mais), praticamente em frente ao parque de exposições. O pai trabalhava no DER, ganhava pouco e viajava muito. A mãe era zeladora no antigo Colégio Vocacional. Quando tinha 15 anos, seus pais se separaram e o pouco que o pai trazia para casa virou nada.
Algumas vezes ela varria o pátio do posto da Polícia Rodoviária e acabava tomando café por lá. Era essa a intenção. Outras vezes, os patrulheiros rodoviários diziam que iam tomar o café na casa dela e levava o pão. Era uma forma de garantir que os irmãos menores dela também seriam alimentados.
No parque havia um restaurante que funcionava somente no período de exposições agropecuárias. O espaço era arrendado principalmente para festas de casamento, quando normalmente era servido churrasco. “A gente ia pedir um pedaço de carne e eles nos davam os restos que estavam no prato. A gente ficava feliz, levava para casa, a mãe lavava e refazia e a gente comia com gosto”, revela ela.
Quando completou 17 anos, Jalmira, a mais velha dos quatro filhos da rigorosa dona Lourdes, começou a trabalhar e ajudar no sustento da casa.
Jalmira casou-se com Nelson, que era filho de um funcionário da Sociedade Rural e morava dentro do Parque de Exposições. Provavelmente ali começava seu vínculo com a entidade, que atravessaria três décadas. Aliás, foi seu então marido que trouxe a notícia de que o então secretário-executivo da Rural, Francisco Esteves Guimarães, o Chico, precisava de uma auxiliar para fazer as etiquetas.
Era dezembro de 1986 e presidia a entidade o pecuarista Carlos Bergamini.Jalmira se apresentou ao trabalho. O presidente perguntou se tinha alguém que poderia dar referências dela. Foi outro líder ruralista e político que a avalizou: Delcides Pomin, que foi presidente do Sindicato Rural de Paranavaí, vereador e vice-prefeito da cidade. Mas não foi por isso que ela o indicou. É que Pomim tinha sido seu professor no Colégio Adélia Rossi Arnaldi. E ele a apadrinhou
Ano seguinte, Bergamini renunciou ao cargo para disputar a Prefeitura de Paranavaí e o vice Deusdete Ferreira de Cerqueira assumiu o comando da Sociedade Rural. E a promoveu à secretária-executiva, maior cargo administrativo da instituição, que ela ocupa até hoje.
Mas quando ela recebeu o convite, ficou insegura.
“O senhor não me conhece. Eu não sei se tenho capacidade para isso”, disse ala a Cerqueira. “Conheço você mais do que você pensa. Nós vamos trabalhar juntos e vamos fazer muita coisa”, rebateu ele. Dito e feito.
Deusdete se tornou o mais longevo dos presidentes e até hoje é reconhecido pelo que mais obras e melhorias fez no parque de exposições. Praticamente toda a infraestrutura do local foi obra do então presidente.
AMOR A RURAL – Em 1992, já familiarizada com a entidade e dominando a organização das exposições, Jalmira teve talvez o seu maior desafio: fazer uma exposição estando no último mês de sua segunda gravidez.
“Eu estava barriguda e tinha muito enjoo. Eu nem tomava água, só cerveja, para diminuir o enjoo. Entrava pessoas na minha sala com perfume e a coisa era quase insuportável. Minha boca enchia d’água e eu tinha que cuspir. Foi horrível, mas tudo deu certo”, relembra.
Terminou a exposição, em março, ela trabalhou até o dia 13 de abril. No dia seguinte, se internou para dar à luz a Jamile e, 25 dias depois estava de volta na Rural. “Nós tínhamos que organizar a Festa do Peão, que seria em julho”, diz.
Ouvindo a Jalmira contar sua história com tanto entusiasmo, não tem como fugir a uma pergunta: mas por que tanto sacrifício? Trabalhar grávida, durante as exposições chegar de manhã e só sair de madrugada?
“Eu amo a Rural. Ela é a minha primeira casa. Passo mais tempo aqui do que em casa. Graças a ela pude dar conforto aos meus filhos, um conforto, que não tive. Eu não quero saber se eu tinha que ganhar mais, se me exploraram como muitos dizem. O que me interessa é que tudo que tenho ganhei aqui. Não é muito. Mas é fruto do meu trabalho”, responde ela com a mesma tranquilidade e orgulhosa por ter conseguido sua independência. Ela se separou do marido em 2000 e atualmente mora com o filho ainda solteiro.
Mas quando ela fala do amor pela Rural, sem deixar de transparecer nenhuma mágoa, conta que é feliz mesmo tendo sido discriminada seja pela cor, condição econômica ou pelo pouco estudo na época (“eu só tinha o ginásio”).
Além disso, nestes anos todos, não se livrou de cantadas de engraçadinhos. Teve que enfrentar o assédio. “É aquela conversinha de ‘você é a mulher que eu desejo’”, aponta. Mas engana-se que para se livrar ela teve que brigar. “Ninguém faz com você aquilo que você não quer”, explica e com a mesma diplomacia que enfrenta outras situações, também se livrava das investidas.
Aliás, embora por várias vezes durante a entrevista ela deixava transparecer bastante emoção, às vezes uma ponta de tristeza, foi só quando falou do seu pouco estudo é que não conseguiu segurar as lágrimas. “Perguntavam como eu podia ocupar esse cargo tendo pouco estudo”, relata. Para agravar procuravam desmerecer o trabalho do então presidente Deusdete de Cerqueira que nunca escondeu que não teve estudo. “Dizia que eu era uma analfabeta como o presidente”, falou entre lágrimas.
Mas as lágrimas talvez não seja por ter sido atacada, mas pela agressão ao ex-presidente, “um homem que tem caráter, íntegro e de uma sabedoria que poucos têm”, diz ela sem disfarçar a admiração, o respeito e o carinho que tem por ele.
FIGURA PATERNA – Na infância e adolescência, Jalmira teve o policial rodoviário Luiz Gotardo Pizatto como referência de pai.
“Ele ia em casa, nos ajudava, conversava muito e dava conselhos. Foi ele que indicou meu irmão para seu primeiro emprego. Se minha mãe não estava em casa, ele ia lá olhar a gente”, diz.
Na fase adulta, Deusdete assumiu a figura de paterna de Jalmira.
“Ele foi o pai que não tive. Ele acreditou em mim, ele investiu em mim e acho que não se arrependeu. Ele é uma pessoa humilde, gosta da honestidade. Ele é uma pessoa iluminada, brilha pelo seu caráter. Com ele aprendi que o que realmente tem o valor é o caráter e a integridade. E isto não se compra. Ele tem a maior das sabedorias, que é a sabedoria divina, e é mais sábio do que muita gente que ostenta diplomas, mas não tem humildade”.
Ela lamenta que hoje as pessoas são avaliadas pelas grifes de suas roupas, a marca de seus carros e pelo perfume que usa.
“Não valorizam as pessoas pelo que elas são. As pessoas hoje em dia valem pelo que tem. Mas eu não penso assim”, ensina.
Durante a conversa, Jalmira sempre faz referência a Pizatto, Deusdete e a sua mãe, dona Lourdes, que tiveram forte influência na sua formação. “A mulher só tem um nome. Se você sujá-lo, por mais que eu queira não tenho como passar uma borracha e limpar seu erro. Era isso que minha mãe ensinava”, enfatiza.
Jalmira também não esquece de destacar a atual diretoria.
“Depois do seo Deusdete essa é a diretoria que fico mais à vontade. Os diretores me respeitam a me valorizam. Eu sento com eles para almoçar. Já teve tempo que compraram uma mesinha para eu poder tomar café em outro lugar que não fosse com os diretores”.
PREFEITURA – O então presidente Deusdete deixou a Rural para se candidatar a prefeito. Se elegeu no ano 2000. E levou Jalmira para assessorá-lo na prefeitura. Durante quatro anos, ela não chegou a se afastar definitivamente da Sociedade Rural. Neste período, ela dava assessoria a entidade, principalmente na época das exposições agropecuárias.
O seu retorno, no entanto, não foi fácil. Ela não conseguia ver outra pessoa como presidente da Rural.
“É como se estivessem ocupando indevidamente o lugar dele”, revela. O que minimizava o mal estar era a presença do próprio Deusdete vez por outra na entidade e a do seu filho Reinaldo Reis Cerqueira, que continuou diretor da entidade. “Sempre que ele (Deusdete) é homenageado me chama para ir junto. Diz que se ele merece a homenagem é porque eu ajudei ele”, conta, orgulhosa.
Revela que está tão fortemente ligada a Rural, que já provocou até ciúme em pelo menos um presidente, que a chamou para uma conversa particular e disse que ali quem deveria brilhar era ele (presidente) e não ela. “O que eu posso fazer? As pessoas me procuram. Pedem a minha ajuda. Nunca fiz isso para aparecer. Mas para cumprir bem a minha função. Isto aprendi com minha mãe”
Hoje ela está em paz.
“Isso aqui é a minha vida. Eu amo a Sociedade Rural”, repete ela. “Me sinto hoje hiper realizada. Sou feliz. Não tenho dinheiro, mas não tenho dívidas, meus filhos estão encaminhados. Os criei com autoridade, às vezes pelo telefone, mas com autoridade e muito amor”, cometa ela, que enfrentou e venceu uma depressão.
Sair da Rural? Não está nos seus planos. Mas ela tem consciência de que ocupa um lugar de confiança do presidente e cada novo mandatário tem o direito de escolher quem vai ocupar o lugar que hoje ocupa.
“O presidente tem que ter liberdade. E se não quiserem continuar comigo, não vou ficar magoada”, fala transparecendo sinceridade.
A propósito, poucas coisas deixam a morena de cabelos enrolados magoada: a falsidade, a indiferença e ser acusada de algo que não fez. E se ela tiver que sair e a pessoa que a substituir quiser uma indica, ela tem na ponta da língua: seja cega, surda e muda. “O peixe morre pela boca”, ensina a mais antiga funcionária da Sociedade Rural.