Acabada a guerra, mais do que contabilizar os estragos, é preciso começar a recompor tudo aquilo que permanece, ainda que abaulado pelas circunstâncias passadas – e mesmo que seja de forma diferente. Afinal, são circunstâncias passadas, vale repetir, e a vida que segue demanda de nós justamente ressignificar o que já parece perdido, sem sentido – ou, mesmo, destruído.
Digo isso porque a educação brasileira também viveu uma guerra e, da mesma forma, requer uma ação análoga de resgate àquilo tudo que se deteriorou ao longo de dois anos de pandemia. A Covid-19 trouxe um cenário jamais visto por essa geração: cidades fechadas, distanciamento das relações humanas, estudantes fora da escola da noite para o dia, além de todos os desajustes socioeconômicos que ainda enfrentamos.
A nós, educadores, sequer houve tempo de ‘preparamos o meio de campo’ para que os impactos fossem minimizados, especialmente entre os mais vulneráveis – ou seja, a população de menor poder aquisitivo. Dessa forma, vimos rapidamente se abrir o abismo da desigualdade no ensino e no acesso à tecnologia.
O déficit de aprendizagem, que já era enorme no ensino público, tornou-se ainda maior comparado ao ensino privado, a partir das aulas remotas. Isso não só pelo menor acesso a recursos tecnológicos, mas também pela ausência de formação adequada entre boa parte dos professores para lecionar no meio virtual. Afinal, preparar uma aula online é muito diferente de uma aula presencial. Quem é professor, bem sabe.
Somado a tudo isso, crianças, jovens e famílias também não estavam aptos a lidar com o ineditismo que a situação impunha. A falta de maturidade e, muitas vezes, também de estrutura física nos lares, surtiam reveses nas rotinas de estudo, principalmente entre os alunos dos ensinos infantil e fundamental. A autonomia que o ensino remoto demanda era algo muito difícil de ser alcançada por esse público. Ainda mais, na intensidade de carga horária que era exigida (a mesma da sala de aula).
Foram dois anos assim: tempo que muitas guerras levaram para começar e terminar. Aos educadores, não resta dúvida, as batalhas foram muitas e quase que diárias. Os estragos gerados, por sua vez, ainda que pouco visíveis a olho nu, é certo que vão demorar para serem remediados. Estudo publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) aponta que a educação no Brasil deve retroceder em até quatro anos, a reboque da perda de aprendizado ocorrida durante a pandemia. Esse gap é de 5 a 16 vezes maior do que a média mundial (3 a 9 meses) verificada neste mesmo levantamento. Algo a ser visto com muita atenção.
A isso, ainda temos que acrescentar o reflexo na saúde mental dos profissionais e estudantes – outro fator importante a ser observado. Tanto, que muitas escolas têm priorizado exatamente essa questão, neste retorno às aulas presenciais. Um acolhimento significativo para este momento de recomeço. Só que também precisa ser logo sucedido por ações que mirem o futuro, sobretudo. Como já mencionei, mais do que contabilizar os estragos, é hora de pensar no amanhã, seguir adiante.
Temos uma grande oportunidade de ressignificar a Educação, em meio a este momento tão crítico. O paralelo que faço aqui em relação às guerras, aliás, busca não só comparar impactos, mas principalmente mostrar um caminho em comum nesse processo. A história nos mostra que a Educação foi a grande indutora da recuperação de nações devastadas no passado, a exemplo do Japão e da Alemanha, que hoje são referências mundiais em termos de desenvolvimento social e econômico. A nós, guardadas as devidas proporções, creio que elas sirvam de inspiração para que façamos o mesmo. Afinal, bons exemplos devem e merecem ser copiados.
Nesse contexto, destaco aqui o enorme potencial das metodologias de ensino que buscam desenvolver as chamadas ‘habilidades e competências do futuro’, como tomadas de decisão, pensamento crítico, aprendizagem criativa e gestão de pessoas. As experiências vividas por aqui têm sido muito positivas, e eu sou testemunha do quanto podem ser transformadoras no processo de evolução da pedagogia.
Desde 2020, parte do trabalho que realizo à frente do Instituto MRV é dedicado justamente a isso. Com recursos próprios, temos incentivado projetos com esse viés em escolas públicas de diferentes regiões do país, trabalhando não só os alunos, mas especialmente os professores. Afinal, além de multiplicarem seus conhecimentos, são os professores quem têm o poder de realmente estimular a autonomia dos estudantes, colocando-os de fato como protagonistas do próprio aprendizado, corroborando diretamente com suas habilidades.
Para tanto, claro, é preciso ter treino, formação – o que nem sempre o poder público consegue oferecer com maestria. Mas o terceiro setor pode (e deve) contribuir bastante nesse sentido. Juntos, entidades e educadores têm tudo para renovar o ambiente escolar em relação ao processo de aprendizado. É partindo justamente desse entendimento que temos desenvolvido nossas ações por meio do instituto.
Na rede estadual de Santa Catarina, por exemplo, uma ação conjunta com 363 servidores resultou na criação de um portfólio de componentes curriculares eletivos, com foco no Novo Ensino Médio, que tem servido de referência a todo país. Uma prova de que a conquista dessa ‘ressignificação’ que aqui pregamos requer, sobretudo, a escuta ativa aos principais atores dessa história. Ou seja, os educadores, estudantes e todos os profissionais envolvidos na área.
É imprescindível entender as demandas de quem vive a Educação no dia a dia. Só assim, a meu ver, enxergaremos melhor quais caminhos seguir e que decisões tomar a fim de facilitar a compreensão do futuro do ensino, seja presencial ou virtual. Do contrário, as políticas públicas educacionais continuarão sendo ineficazes, e o gap de aprendizado só aumentará.
Importante termos em mente que, para se construir um futuro melhor, é preciso agir agora. Deixar para cuidar da Educação amanhã já pode ser tarde demais.
*Blenda Alves é formada em Gestão das Organizações do Terceiro Setor, com MBA em Gestão de Negócios e Inovação e pós-graduações em Gestão em Responsabilidade Social e em Gerenciamento de Projetos de Ciências Sociais Aplicadas, Blenda Alves é coordenadora do Instituto MRV