*Renato Benvindo Frata
Há muito me pergunto sobre a alma, esse enigma que nos abraça como um grande ponto de interrogação. Várias pessoas a definiram, as religiões a explicaram, mas de certeza se tem é que até onde é verdade que existe, ninguém provou. No entanto, as tradições a identificam como “ser”, “vida” ou “criatura”.
Para a filosofia, alma não se limita ao princípio da vida, mas ao conhecimento, substância eterna independente do corpo que se unindo a ele temporária e acidentalmente, a faz real, imutável, eterna, etc., o que nos dá a ideia de que discutir sobre ela só criaria cansaço e nenhum resultado prático.
Fisiologistas, pela metafísica, tentaram estabelecer o local no corpo humano onde ela se localizaria: para Aristóteles, ela fica no coração. Para Erasístrato, nas membranas; Herófilo, nas cavidades cerebrais; Serveto, o ducto mesencefálico; Aurâncio, o quarto ventrículo; Descartes, na glândula pineal; e a alma, com sua estrutura metafísica, religiosa e coisa que o valha, continua misteriosa.
A Logosofia expressa que não há outro intermediário entre Deus e o homem, com quem se deve vincular e a quem deve oferecer a direção de sua vida.
Ser ou não ser, diria Shakespeare – eis a questão, deixando o problema em aberto.
Melhor deixar como está para ver como é que fica, mesmo porque indagar o porquê em sendo santa e eterna, o corpo que a recebe e mantém adoece, morre e apodrece? Mil outras perguntas poderiam nascer dali, mas o foco aqui não é a alma do corpo, mas a alma do copo.
A nossa, do corpo, não vemos, sentimos, ou somatizamos, mas existe outra espécie de alma: a do copo, ou da taça. Ela se chama aroma (daquilo que se põe dentro dele). Digamos, o simpático vinho tomado em boa companhia; a dose de uísque em manhã de domingo, a cerveja gelada no churrasco, ou a golada de cachaça no boteco de fim de rua, numa tarde de sexta, antes de chegar em casa.
Em todos esses momentos deixa na borda, além do batom (conforme o caso) alinhavado com ternura as marcas convidativas dos lábios, e também o perfume da uva macerada, do malte envelhecido em madeira, da cevada liquificada, ou da garapa destilada.
Os copos, são, portanto, receptáculos guardadores de prazer, e sua alma é tão nobre e tão deliciosamente altaneira que não possui qualquer preconceito com o sabor um pouco mais doce ou mais amargo, com o teor alcoólico abaixo ou acima de 50º, a cor copiada do arco-íris em qualquer dos matizes, a consistência ou procedência do conteúdo que lhe ponham dentro.
Eles os guardarão com tal preciosidade enquanto se o consome que independerá do tempo – sol, chuva, frio, calor, note, dia, e cuidarão tanto e tão bem desses componentes que os lábios, ao se entreabrirem e se aproximarem de suas bordas com o fim de sorver o líquido armazenado no segundo gole em diante, dirão ao nariz que é o momento certo de lhe aspirar o perfume, e se regozijar como se estivessem a flanar em nuvens na presença de anjos com direito a trombetas e até serpentinas.
Para dizer que a alma do copo, mesmo que não tenha nascido nele propriamente, como a nossa, mas no barril de uísque, na pipa de vinho, no tanque hermeticamente fechado da cerveja, no tonel sombreado de cachaça ou em qualquer outro recipiente com suas especificidades, se desprende ao envasar litros, garrafas, corotes, para fazer espargir sua robustez e maciez nos copos e semelhantes.
Assim como a alma que conhecemos por ouvir dizer que é santa e pura, o aroma que dá vida à bebida e ao momento ao se aliar àquele que a sorve, de certo modo lhe confere sobrevida, já que a essa também se pode denominar felicidade. E, como dizem, felicidade é vida!
Note-se mais: a alma do copo, nesses casos, pede que o momento seja elevado aos céus num solene e delicioso tim-tim. Os sorrisos e outras mesuras, claro, ficam por conta da alegria de cada um.