Por Paulo Borba Casella
Primeiramente, cabe ressaltar que Israel tem o direito de existir. E Israel tem o direito de se defender. Obviamente, contudo, mesmo em conflito armado deve haver proporcionalidade e excessos são condenáveis, e tem de ser averiguados e eventualmente punidos. É também necessário apontar como condenável e condenar qualquer ato terrorista. Como também são condenáveis quaisquer ataques contra população civil, quer palestina ou israelense.
É oportuno lembrar o parecer da Corte Internacional de Justiça, sobre as consequências jurídicas da construção do muro em território palestino ocupado, de 9 de julho de 2004, onde, dentre outras conclusões, foi apontado: que Israel não pode invocar a necessidade de defesa – como a construção do muro – porque esta não existiria, se não tivesse havido a anterior ocupação de território palestino; e no Direito internacional vigente, a ocupação militar não criar título jurídico sobre território.
Portanto, território ocupado (por forças israelenses) continua a ser território ocupado (palestino). A potência ocupante não pode pretender legitimidade nem exercer soberania sobre este. E assinalou ainda que a construção do muro avança sobre território palestino, além de criar obstáculos à vida normal e circulação da população palestina. Diante do grave quadro, desde 7 de outubro de 2023, não se pode esquecer a situação de mais de 2 milhões de civis palestinos na faixa de Gaza, concentrados em território de 365 quilômetros quadrados – fazendo desta uma área com densidade populacional superior às cidades de Tóquio e de Londres –, que tem sido sujeitos a sistemáticos bombardeios, por mais de cem dias.
Alegadamente, são avisados para se deslocarem: faltou dizer para onde. Dado que o território é isolado, por terra, por mar e por ar, pelas forças militares israelenses. E a fronteira com o Egito tem sido mantida fechada, exceto para entrada de ajuda humanitária e saída de algumas pessoas, previa e meticulosamente controladas.
Há indícios de genocídio – e tem de ser investigado o eventual cometimento do crime internacionalmente tipificado pela Convenção das Nações Unidas para a prevenção e a repressão ao crime de genocídio (1948, em vigor desde 1952) – na medida em que o primeiro ministro de Israel declara a intenção de “transformar Gaza em uma ilha deserta”, o ministro da defesa declara estar Israel lutando contra “animais humanos, que têm de ser tratados como tais”. Além de contraditória em seus termos (‘animais’, ‘humanos’) é odiosa, pela intenção de desumanizar os oponentes e justificar qualquer medida contra estes adotada. E outro ministro de estado israelense declara que se deveria jogar uma bomba atômica em Gaza!
Depois de iniciado o procedimento, junto à Corte Internacional de Justiça, para averiguação de prática de genocídio, começa a ser dito que referidas declarações foram “tiradas de contexto”. São necessárias averiguações de eventual cometimento desse grave crime internacional. E não se pode, previa e imotivadamente condenar a África do Sul, por pleitear junto à Corte a sua averiguação. Teve também motivo o governo do Brasil em manifestar apoio a essa iniciativa junto à Corte Internacional de Justiça. Usar como arma de guerra em relação à população de mais de 2 milhões de civis palestinos, – configura crime de guerra – bloquear acesso à comida, a água, tanto para beber, quanto para higiene –, a medicamentos e suprimentos médicos, bem como a energia e combustível – necessário para movimentar as usinas de dessalinização de água e movimentação de ambulâncias e acesso à internet.
Obviamente essa estratégia de guerra configura tratamento desumano e degradante, deliberadamente infligido a toda essa população civil palestina, como tipifica a Convenção das Nações Unidas contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (1984, em vigor desde 1989).
Poderia ainda ser feita ‘reconvenção’ – modificação do pedido de investigação do cometimento de crimes – junto à Corte Internacional de Justiça, para incluir a averiguação de cometimento de outros crimes internacionalmente tipificados, tais como a discriminação racial, nos termos da Convenção das Nações Unidas para a eliminação de todas as formas de discriminação racial (1969), bem como a eventual prática de apartheid – segregação racial, como política pública –, nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre a repressão e punição do crime de apartheid (1973), tipificado como crime contra a humanidade, como ulteriormente confirmado pelo Estatuto de Roma (1998, em vigor desde 2002), que criou o Tribunal penal internacional.
Não se trata de imputação de genocídio para discutir controvérsias jurídicas relacionadas à aplicação do direito humanitário e aos problemas da situação humanitária prevalecente em Gaza – que são graves problemas, de generalizada preocupação. Não se trata de instrumentalização do direito internacional. Trata-se de solicitar à Corte Internacional de Justiça, como principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas, que averígue e declare se existem indícios de violações em curso do direito internacional.
Nenhum estado pode se pretender acima da lei internacional, nem pretender excluir qualquer averiguação, liminar e imotivadamente, de suas condutas.