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CRÔNICA

Marcas do ontem

Renato Benvindo Frata

Há momentos em que o inusitado tira o sorriso da boca para lhe colocar um palavrão. Foi assim que logo pela manhã, ao sair da garagem fui literalmente atropelado. Por um pardal que espaventado, trombou no vidro e plof! caiu agonizando.

Como é fofo, tem pouca força e a velocidade do carro era mínima ele não morreu, mas ficou estrebuchando tontinho da silva. Peguei-o e o levei sob o jato de água fria da torneira à mercê de restabelecimento, momento em que fui tomado por uma lembrança guardada no baú de memórias.

Vi-me de calça curta, camisa aberta no peito e com um embornal cheio de pombinhas mortas a estilingue. A ação das mãos segurando agora o pequeno pardal sob o jato frio para lhe dar vida, transformaram-se nas que depenavam, estripavam, cortavam, lavavam e salgavam corpos e corpos de aves, para levá-los à cozinha e se transformarem em complemento da indefectível polenta do dia-a-dia. Era maldade? Não, necessidade. A pobreza exige que se elimine princípios! E até se pode dizer que a miséria animaliza.

Sorte que a consciência nos põe em pé para contar, arrepender e ao mesmo tempo se desculpar. Ninguém refaz o passado, apenas o lamenta.

Um fio de sangue aflorou entre os bicos do pardal, o que me trouxe mais apreensão, todavia, em alguns instantes ele se mexeu, tentou bater asas, mas o mantive: não há quem não reaja sob uma ducha gelada.

Depois ele abriu os olhos e piou, sacudiu a cabeça e forçou novamente como se dissesse pronto para outra aventura. Seu coraçãozinho esticava e retraía, da mesma forma como batia o meu quando nos almoços regados a caldo de pombinhas, a polenta ganhava novo sabor.

Tirei-o da sufocação da água, saí ao sol, sequei-o e, notando que melhorara, abri as mãos. Ele se foi, para cair logo a uns seis, sete metros e voltar a se bater. Tentava se levantar, mas caía. Corri, peguei-o de volta, conversei amenidades, aninhei-o na toalha e o pus sobre o banco do carro para que só saísse quando sentisse que era hora.

Ele se mexeu, recuperou-se, se levantou, voou com segurança e, como se nada houvera, pousou sobre o muro onde se esticou estendendo ao sol as penas. Piou duas ou três vezes como se nada de estranho houvesse e voou.

Não sei como funciona a memória de um pardal, se ele é capaz de se lembrar ou se existe um limite, mas esse episódio serviu-me para reflexão: o passado – bom ou mau – deve ser visto como aquela bolha que se forma na sola dos pés depois de longa caminhada. Ela dói, murcha, seca, descasca a pele e até esquecemos dela sem nos preocupar com a marca, mas sempre estará ali.

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