KLAUS RICHMOND
DA FOLHAPRESS
A maratonista Maria Zeferina Baldaia, 50, ainda tem fresca na memória cada uma das formas como já foi chamada ao longo das últimas três décadas.
Maria, pelos mais próximos, e Maria Zeferina ou Baldaia, por uma grande parte das corredoras com quem competiu.
Pezinho, pelo primeiro treinador Antenor Augusto Cruz, o Pezão, que lhe deu carinhosamente o apelido por correr descalça no início, e Tata, pelo filho Michael Jordan, criado mais próximo à avó devido aos sacrifícios que Zeferina precisou fazer na carreira.
“Ainda tem a menina da cana, a boia-fria, a do canavial… e sou tudo isso mesmo, com muito orgulho. Essa é minha história”, disse a atleta à Folha de S.Paulo.
E não há um dia sequer que ela também não lembre de 31 de dezembro de 2001. A data a transformou na terceira brasileira a vencer a São Silvestre -depois de Carmen de Oliveira, em 1995, e Roseli Machado, em 1996- e mudou de vez sua vida.
Neste sábado (31) Zeferina se despede das competições profissionais justamente no local que a catapultou nacionalmente na carreira e fez conhecida cada uma das páginas de sua história. A Corrida Internacional de São Silvestre, em São Paulo, será transmitida a partir das 7h30, na TV Globo.
“Cinquenta e dois minutos e doze segundos”, lembra ela, o exato tempo em que terminou a prova naquele ano.
“Agora não dá mais, né? Estamos conversando para tentar entre 1h10, 1h15… tenho uma meta, claro, mas a emoção fala alto porque lembro do que aconteceu em cada quilômetro. Na última que fiz, em Belo Horizonte, não sabia se corria ou se chorava”, completa.
Definitivamente, não há como Zeferina esquecer a relação quase umbilical com a prova paulista.
Diariamente, ela olha para o troféu conquistado na sala de casa e se dirige ao centro de treinamentos que leva o nome dela, no Jardim Europa, em Sertãozinho, inaugurado com um investimento de cerca de R$ 4 milhões dois anos e sete meses depois do feito.
“Centro Olímpico Maria Zeferina Baldaia. Não caiu a minha ficha até hoje, parece que ainda estou sonhando. Cruzarei a linha de chegada cheia de gratidão a Deus. Se pudesse voltar, faria tudo de novo”, afirma.
A prova de 15 km marcada por uma espetacular arrancada sobre a queniana Margaret Okayo, líder na maior parte do percurso e favorita na época, na subida da avenida Brigadeiro Luís Antônio, nem de longe foi a única conquista da carreira.
No mesmo ano, meses antes, já havia vencido a Volta Internacional da Pampulha, em Belo Horizonte. Em 2000, surpreendeu ao ganhar a Maratona Internacional de Curitiba largando com corredores amadores -a 200m de distância do grupo de elite.
Ainda faturou a Corrida dos Reis, em Cuiabá, a Meia Maratona do Rio de Janeiro e a Maratona Internacional de São Paulo.
Nascida em Nova Módica, no interior de Minas Gerais, a atleta se mudou com a família para Sertãozinho durante a infância. Começou a correr por volta dos 12 anos, de calça jeans e descalça -e só aos fins de semana.
Durante os outros dias, ajudava diariamente os pais nas plantações de algodão e de amendoim para o sustento da família de nove irmãos -um deles, Fabiano, portador de paralisia cerebral. Ainda trabalhava nos canaviais.
“Por mais de dez anos eu só corria por correr. Não sabia o tempo, não sabia de nada. Arroz era só no dia do pagamento. Bolacha e iogurte? Nunca tivemos. Mas sempre fomos felizes”, lembra.
Ganhou o primeiro par de tênis às custas de muitas bolhas nos pés enquanto corria por estradas de terra, repleta de pedras, após uma prova em Poços de Caldas. Também superou outros calos e percalços trabalhando como gari, babá e faxineira.
“Eu ia de carona ou correndo até Ribeirão [Preto, interior de São Paulo] para treinar, não tinha pista. Ainda ouvia que era da senzala, que não ia ser ninguém. Nunca bati boca, só jogava para dentro para me fortalecer”.
Na primeira grande corrida vencida por ela, em Curitiba, Zeferina pagou a competição com o dinheiro que havia recebido da demissão de um emprego.
Ela conta que chegou cedo para garantir lugar entre a multidão de corredores amadores e foi informada já próxima ao km 30, ao emparelhar com a atleta Ilda Alves dos Santos, que estavam juntas na liderança da competição.
“Eu não via o grupo de elite e não entendia o motivo, pensava estar muito atrás. Quando cheguei nela, perguntei e tomei um susto”, relata.
Ela deixou para trás a adversária e ainda Marizete de Paula Rezende, ambas favoritas. Depois, provocou risos ao sair abraçada com o enorme cheque simbólico de R$ 10 mil entregue à vencedora.
A atleta ainda vai virar filme em 2024, em produção dos diretores Samuel Prisco e Lucas Bretas.
O projeto iniciará em breve a fase de captação de recursos e contará desde as origens em Minas Gerais, com depoimento das adversárias mais relevantes, uma delas a própria Okayo.
Zeferina põe fim ao ciclo vitorioso e de muita superação, marcado pela São Silvestre, mas sabe que também terá muito para lembrar de 31 de dezembro de 2022 em diante.