CLÁUDIA COLLUCCI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Mesmo com o fim da pandemia, a Covid-19 ficará entre nós em forma de endemia. A doença vai continuar presente, mas sem um aumento significativo de casos. O Sars-CoV-2 será mais um dos vírus que causam a gripe grave.
A avaliação é do cirurgião Paulo Chapchap, que liderou um grupo de médicos e especialistas em saúde pública no Todos pela Saúde, uma iniciativa do Itaú-Unibanco que investiu mais de R$ 1,2 bilhão no combate à pandemia e agora virou tema de documentário.
Frustrações, dificuldades, desafios, erros e acertos desse trabalho compõem o filme “SARS-CoV-2/O Tempo da Pandemia”, dirigido por Eduardo Escorel e Lauro Escorel. O longa estreia no próximo dia 30, no Cinesesc, durante a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
O grupo, composto por Drauzio Varella, Eugênio Vilaça, Gonzalo Vecina Neto, Maurício Ceschin, Pedro Barbosa e Sidney Klajner, reuniu-se diariamente em 2020 para decidir as medidas mais urgentes a serem tomadas durante a crise sanitária.
Dentre as inúmeras frentes, foram feitas campanhas de informação, a compra de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), respiradores e outros equipamentos hospitalares, de oxímetros para as unidades básicas de saúde, testes sorológicos, além da capacitação de profissionais.
“Não existe saúde pública sem informar as pessoas do que elas têm que fazer e quais são os direitos delas. Procure peças publicitárias do Estado [sobre medidas preventivas], não tem. Uma parte importante dos recursos [da iniciativa] foi para o pilar de informar”, afirma o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto.
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“Parecia que [as autoridades federais] estavam remando contra. Você faz ampla campanha de distanciamento físico e utilização de máscara, e as nossas autoridades se reúnem, aglomeram e não usam máscaras, dizem que isso é bobagem”, lembra Chapchap sobre práticas negacionistas lideradas pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
A mesma frustração, segundo ele, aconteceu em relação ao tratamento precoce com medicamentos sem eficácia para a Covid, rechaçado pelo grupo, mas incentivado pelo Planalto.
No início, não havia informação nem do que estava faltando, lembra Maurício Ceschin, ex-presidente da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). “Já tinha uma avalanche de doentes chegando aos serviços e a gente não tinha um retrato. Faltava leitos de UTI, faltava monitor, faltava luva. Quanto faltava? Aonde faltava? Nós não tínhamos essa informação, o Ministério não tinha, ninguém tinha.”
O grupo enviou equipes para todos os estados do país e em um mês havia montado gabinetes de crise em todos eles. Em 186 hospitais referências em Covid, profissionais alocados pela iniciativa passaram a orientar equipes locais sobre o fluxo de pacientes, a identificação de casos graves e os melhores protocolos.
“Uma coisa é fazer gestão em tempos de bonança, a outra é a gestão quando no seu hospital você tem 15 ambulâncias e não tem um leito vago para internar”, comenta Eugênio Vilaça, consultor em saúde pública.
A enfermeira Verlaine Alencar, administradora de saúde no Hospital Sírio-Libanês, foi uma das que se deslocaram até Manaus (AM) no auge das mortes para ajudar na gestão da crise. “Apesar da briga da família [que temia por sua segurança], do medo, eu disse ‘eu vou’. Havia falta de leitos, Samu parado na porta sem o pessoal conseguir receber o paciente, pessoas morrendo numa situação bem complicada”, lembra.
O grupo atuou também em várias instituições de longa permanência para idosos fazendo testes de Covid nos residentes e nos profissionais e implantando protocolos mais adequados de cuidado. Videochamadas entre os idosos e suas famílias, além de mimos como radinhos de pilha, também foram providenciados.
Algumas ações do grupo, porém, não se mostraram tão efetivas na prática. Um exemplo foi a transformação de escolas em alojamentos para abrigar infectados que não tinham condições de manter o isolamento porque vivem em moradias precárias com muitas pessoas em um mesmo cômodo.
“Foi um fracasso. As pessoas não querem ficar isoladas, querem ficar junto com a família. As mulheres com filhos, se forem para um abrigo, quem cozinha para eles, quem cuida deles? Deu errado, não funcionou, gastamos dinheiro à toa”, diz o oncologista Drauzio Varella, colunista da Folha de S.Paulo.
Por meio de depoimentos do grupo gestor e de relatos de sete profissionais da linha de frente, o telespectador revive os momentos mais críticos da pandemia, como o esgotamento de leitos de terapia intensiva em Manaus (AM).
“Foi muito traumático. Chegava num setor e eram 20, 30 pacientes com indicação de UTI. O jeito era escolher aqueles com mais probabilidade de sobreviver. Internamos pessoas em cadeiras de roda, em macas no chão”, lembra o médico intensivista Marcelo Ferreira, coordenador da UTI do Hospital Dr. João Lúcio.
Muitos dos depoimentos são carregados de emoção. “Tive mortes amigos próximos que me doeram muito porque poderiam ser evitadas [com decisões corretas dos governos]. O que me incomoda é a morte desnecessária”, diz Ceschin, com olhos marejados e voz embargada.
Pedro Barbosa, diretor-presidente do Instituto de Biologia Molecular do Paraná, também se emocionou com as lembranças. “A sensação de impotência é muito ruim. É um misto de tristeza e de revolta. É um sofrimento de ver tanto negacionismo e a barbárie acontecendo.”
Em outubro do ano passado, com os recursos praticamente esgotados, o grupo começou a ser desmobilizado e foi surpreendido com a segunda onda da pandemia, com Manaus vivendo, de novo, uma situação muito crítica, agravada por falta de oxigênio.
“Aquilo acontecer com uma população onde 76% das pessoas já tinham tido contato ou infecção por Covid um ano antes? Eu me senti um pouco no meio do filme do dia da marmota [Feitiço do Tempo, 1993] onde tudo acontece de novo. Só que numa situação em que os recursos humanos beiram à exaustão”, comenta Sidney Klajner, presidente do Hospital Albert Einstein e também colunista da Folha de S.Paulo.
Para os especialistas, o Brasil perdeu a guerra de enfrentamento da pandemia. “Poderia ter sido diferente se a autoridade federal tivesse entendido os vários de graus de sofrimento, o social, econômico, o educacional. Vimos famílias inteiras sendo dizimadas”, afirma Chapchap.
Eugênio Vilaça se diz ainda impactado com toda a desgraça causada pela pandemia, mas otimista com o futuro. “Tenho esperança de que vão surgir retrovirais, vacinas melhores, mais oportunas, megaplataformas de exames, vamos conviver melhor com isso. A gente convive com a gripe.”
O grupo é unânime em apontar que a pandemia mostrou que o SUS é fundamental, que sem ele o enfrentamento da pandemia teria sido um caos maior e que investir mais recursos no sistema público de saúde é a melhor forma de distribuição de renda e de reduzir as desigualdades sociais.
“O que mata não é o vírus, é a desigualdade. O preto que morre cinco vezes mais do que o branco, morre porque tem que buscar comida, porque não tem comida em casa, e não por causa do vírus”, diz Vecina Neto. “Precisamos entender que a desigualdade social não é um destino final do Brasil”, acrescenta Drauzio Varella.
“O problema do outro é o nosso problema. Se não atuarmos como sociedade organizada, resgatar essas comunidades do tráfico, do crime, das milícias, o Estado reconhecer essas pessoas e atuar, essa pandemia não vai servir de aprendizado para nada”, resume Ceschin.
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