REINALDO SILVA
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As mãos calejadas, acostumadas à lida na roça, também acariciam e acolhem. O pequeno Heitor, de 3 anos, se acomoda no colo da avó Maria de Fátima, que repousa uma das mãos sobre o rosto do menino, um gesto de carinho e proteção.
Os dois moram na Vila Alta, em Paranavaí, e passam a maior parte do tempo juntos, companheiros quase inseparáveis. Essa proximidade com o neto alegra e preenche o coração de dona Maria de Fátima, castigado pela vida desde muito cedo.
A história dela fecha a série de reportagens especiais do Diário do Noroeste alusivas ao Dia Internacional da Mulher, comemorado em 8 de março.
Tinha 4 anos quando a mãe saiu de casa. “Foi comprar pão e nunca mais voltou”, conta. Abandonadas, ela e a irmã não tinham a quem recorrer. Estavam sozinhas diante de um mundo que não conheciam e se viram dormindo em tábuas forradas por panos e pedindo ajuda para os vizinhos.
A menina Maria de Fátima foi adotada por uma família que a levou para as incontáveis viagens em busca de trabalho. Nascida em Arapongas, município paranaense a aproximadamente 140 quilômetros de Paranavaí, precisou aprender logo cedo a trabalhar nas lavouras de café e milho.
“Naquela época a gente era boia-fria e não tinha direitos, não tinha condição de estudar”, lamenta.
Aos 17 anos de idade, um acidente marcaria a vida de dona Maria de Fátima para sempre. Durante a geada negra de 1975, quando os cafezais paranaenses foram dizimados pelas baixas temperaturas, ela empunhava uma foice para retirada das plantas queimadas e um estilhaço de madeira atingiu o olho esquerdo tirando a visão.
O abandono da mãe, a cegueira parcial e as características da vida que levou causaram amargura. Envolvida pelo rancor, revoltou-se. Culpava todos os que estavam por perto e sentia que o mundo havia virado as costas para ela.
Mesmo depois de se casar, era atormentada pelo passado de rejeições e perdas.
Novos rumos – Os rumos de dona Maria de Fátima mudaram quando recebeu ajuda de pessoas religiosas que lhe estenderam as mãos. Foi envolvida pela caridade e percebeu que existia mais do que decepções. Descobriu o amor ao próximo. “Fui largando a bagagem de maldade.”
As diferentes perspectivas trouxeram novo ânimo e ela começou a se dedicar a trabalhos voluntários. Só na Pastoral da Criança foram muitos anos. Ensinou aquilo que aprendeu: cuidados com a saúde, alimentação balanceada. “A gente orientava e incentivava.” Transmitiu esperança.
Entre tantas definições possíveis, esperança é a expectativa, o anseio de tornar possível aquilo que deseja. Esperança é acreditar em dias melhores.
Assim espera dona Maria de Fátima, que se esforça todos os dias para ajudar os que mais precisam e anseiam por condições mais dignas de vida. Faz o que pode: mobiliza a comunidade, arrecada alimentos, prepara refeições.
A casa na Vila Alta é de madeira. Os cômodos pequenos são separados por cortinas, a cozinha tem alguns móveis e muitas panelas, no fundo da casa, um fogão a lenha. É ali que dona Maria de Fátima elabora os pratos que alimentam 28 famílias do bairro duas vezes por semana.
Ela se desdobra para equilibrar o cardápio. Corta a abobrinha, rala a cenoura e refoga o repolho para o arroz temperado. Quando é possível, acrescenta algum tipo de carne. Faz sopa, macarronada, pão. “Fico esperando chegar a arrecadação para poder cozinhar. Sempre penso nas crianças – quando têm o que comer, vão dormir de barriguinha cheia.”
A voluntária se emociona ao lembrar de uma gestante de 20 e poucos anos que morreu recentemente por falta de alimentação adequada. “Dói na alma da gente.”
Suporte – A ajuda vem de perto e de longe. Os próprios moradores participam, mas não só eles. As doações chegam de entidades religiosas e assistenciais. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é parceiro frequente e entrega arroz, mandioca, batata doce, farinha.
Acostumada com a roça, dona Maria de Fátima complementa a variedade de alimentos. Perto de casa, ali mesmo na Vila Alta, cultiva uma horta com verduras e frutas. Os cuidados são diários e ela faz questão de mostrar cada plantação: alface, almeirão, beterraba, cebolinha e até abacaxi.
O pequeno Heitor, o neto de 3 anos, acompanha os passos da avó até o terreno. Anda para lá e para cá, aponta, traz uma folhinha de recordação. É quase como se fizesse parte de tudo isso, o ajudante da vovó, o assistente Heitor.
Alfabetização – E se dona Maria de Fátima é o exemplo do neto, nunca é tarde para ensinar a importância da educação. Impedida de estudar por causa do trabalho na roça, desde muito nova, ela nunca frequentou uma sala de aula. Pelo menos até agora.
Graças a uma iniciativa do Coletivo LGBTI+ de Paranavaí em parceria com o MST, o Partido dos Trabalhadores (PT), a Associação Negritude de Promoção da Igualdade Racial (Anpir) e a Realidade Street, os moradores da Vila Alta têm a oportunidade da alfabetização.
São cinco alunas e entre elas está dona Maria de Fátima. “Não saber ler e escrever é uma decepção muito grande para mim.” Mas esse problema logo será resolvido. “Estou conhecendo as letras”, comemora.
Na aula de artes, as mãos que seguraram foices e enxadas, que dão aconchego ao neto e que cozinham de forma voluntária são as mesmas mãos que dobram e recortam a cartolina. A dedicada aluna se esforça e se diverte. Está satisfeita.
A professora aposentada Ivanilda Gonçalves é voluntária e ressalta que o compromisso é com a dignidade dessas mulheres. “Quando escrevem uma vogal, vou para a casa empolgada.” O kirigami, arte japonesa de recorte levada à aula na noite de quarta-feira, também teve um propósito, o de mostrar que “todos trabalhando juntos constroem fatos, constroem a história”.
Para dona Maria de Fátima, os estudos trazem esperança de dias melhores. “Vou aprender a ler e escrever para não passar mais por nada disso. Vou chegar no topo.” Ela quer escrever com as próprias mãos um novo futuro.