REINALDO JOSÉ LOPES
SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Pesquisadores da França e do Laos identificaram pela primeira vez um vírus de morcegos que é parente próximo do causador da Covid-19 e consegue invadir células humanas usando o mesmo método do vírus pandêmico.
Trata-se de um passo importante para entender as origens da doença, além de reforçar o que muitos cientistas alertam há décadas: patógenos com potencial de causar novas doenças infecciosas na nossa espécie existem aos montes na natureza.
O estudo, que acaba de sair numa das principais revistas científicas do mundo, a Nature, foi coordenado por Marc Eloit, do Laboratório de Descoberta de Patógenos do Instituto Pasteur de Paris. Também assinam o trabalho cientistas da filial do Instituto Pasteur no Laos e de outras instituições desse país do Sudeste Asiático, que faz fronteira com nações como a China, a Tailândia e o Vietnã.
“O trabalho está muito bem feito, e é um misto de surpresa e ‘eu te disse’, na verdade”, diz Flávio Guimarães da Fonseca, pesquisador da UFMG e presidente da Sociedade Brasileira de Virologia. “Desde antes da pandemia, a gente já vinha juntando peças e percebendo que os coronavírus que utilizam essas vias de infecção são muito mais disseminados do que a gente achava antigamente.”
As 46 espécies de morcegos analisadas pelo estudo de Eloit e seus colegas foram coletadas em cavernas do Laos. Já se sabe há tempos que os mamíferos voadores da região estão entre os possíveis reservatórios de parentes “selvagens” do Sars-CoV-2, o causador da Covid-19. Vírus idênticos a ele ainda não foram detectados na natureza, mas patógenos cujo material genético tem mais de 95% de semelhança com o do Sars-CoV-2 vêm todos de morcegos asiáticos.
Mesmo esses “primos de primeiro grau” do coronavírus pandêmico, entretanto, trazem diferenças significativas num ponto crucial: a ponta da chamada proteína da espícula, que o vírus usa para se conectar a pontos de entrada específicos na superfície das células humanas. Trata-se do receptor designado pela sigla ECA2. Ele está presente numa grande variedade de células, em diversos tecidos do organismo, o que explica os múltiplos efeitos da Covid-19, que vão muito além dos problemas respiratórios.
Se um vírus de morcegos realmente fez o salto de uma espécie para outra e começou a infectar seres humanos, conforme acredita a maioria dos cientistas, ele precisava ter a “chave” certa na proteína da espícula para abrir a fechadura do receptor ECA2, já que o formato dele muda das células de uma espécie para outra. Nenhum vírus de morcegos com a chave correta tinha sido encontrado até hoje.
Na nova pesquisa, a equipe internacional obteve amostras de sangue, saliva, urina e fezes de 645 morcegos, usando um método que “fisga” o material genético de vários tipos de coronavírus. Depois, decodificaram o genoma de todos os coronavírus encontrados e o compararam com catálogos online desses vírus. Diversos patógenos identificados por esse método mostraram grande proximidade genética com o Sars-CoV-2, destacando-se o designado pela sigla BANAL-52, que tem 96,8% de semelhança com o causador da Covid-19.
E a análise da ponta da proteína da espícula, justamente a parte mais importante para a interação com o receptor das células invadidas, revelou semelhanças ainda maiores. Essa similaridade é avaliada pelo número de aminoácidos, os componentes que, juntos, formam as proteínas. Dos 17 aminoácidos que interagem com o receptor ECA2 no vírus que afeta seres humanos, três vírus de morcegos do Laos, entre os quais o BANAL-52, carregam 16 ou 15 que são idênticos -como se tivessem uma chave com uma ou duas pequenas ranhuras a menos, digamos, mas ainda assim aparentemente funcional.
Foi isso o que testes mais aprofundados envolvendo as espículas e os próprios vírus demonstraram. No tubo de ensaio, as versões das espículas presentes neles se mostraram capazes de interagir com o ECA2 humano e também de promover a invasão e a multiplicação dos vírus dentro de células humanas. A eficácia do processo foi similar à do vírus original da Covid-19 (anterior às variantes que passaram a surgir depois do espalhamento dele mundo afora).
A equipe realizou ainda uma análise evolutiva do material genéticos dos vírus de morcegos coletados até agora e do Sars-CoV-2. A conclusão é que, por enquanto, o BANAL-52 e outros dois vírus semelhantes são os parentes mais próximos do causador da Covid-19, enquanto mais alguns vírus isolados na China parecem ter contribuído para o patógeno que afeta humanos por meio de recombinações de seus genomas, ou seja, trocando material genético entre si.
Essa mistura não tem nada de muito surpreendente, porque os grandes conjuntos de cavernas calcárias do Sudeste Asiático abrigam populações de diversas espécies de morcegos que se agrupam juntas, facilitando muito a troca de patógenos entre os bichos. O desmatamento e o tráfico de animais crescentes, por sua vez, aumentam as chances do contato deles com os seres humanos.
“O trabalho reforça a ideia da origem do Sars-CoV-2 numa espécie de morcego e mostra que coronavírus como esses vão, de tempos em tempos, emergir”, diz Maurício Lacerda Nogueira, virologista da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (interior paulista). “Mostra ainda a importância da vigilância em relação a esses reservatórios de novos vírus.”
“A gente tem de estar muito atento ao que anda acontecendo. É algo típico da situação ecológica que os seres humanos alcançaram: hoje, nós somos uma espécie muito mais intrusiva, muito mais invasiva, e consequentemente esses fenômenos se tornam mais frequentes por causa do maior contato com espécies silvestres que albergam esses vírus”, diz Flávio da Fonseca.
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