O salão era magistralmente decorado com paredes brancas ornadas de dourado, tinham o requinte dos palácios dos czares, andares amparados por colunas de bronze e mármore, janelões com cortinas esvoaçantes em cujo peitoral se aninhavam músicos com instrumentos, e no piso extenso, a plateia. Tudo era belo, indiscreto na alegria e gingados simétricos das valsas, nas mãos macias sobre as costas dos parceiros e estes, com mais vigor, nas cinturas delas conduzindo-as no vaivém enxertado de rodopios e langores. A valsa é a dança dos amores, consegue recitar poemas esquadrinhados nos volveres quais folhas embaladas por vento morno de outono.
Todos a caráter, homens de preto nos ternos elegantes e mulheres em vestidos com laçarotes, buquês, rendas em frivolité e joias caras escorridas pelo corpo, reluzentes como os lampadários de cristal que pendiam voluptuosos sobre nós, e todos cantávamos extasiados com a música que nos invadia. Ou seria efeito da bebida que serviam? O álcool dá-nos nos alegria e arranca de nós a pudicícia para nos fazer bonecos de taras. Até que um vento malquisto bateu numa janela esfarelando-a, parando tudo. Um reboliço.
Sem muito esperar corri até ela, olhei para fora e me espantei. A noite negra era triste, diferente do festivo salão, e chorava lamúrias nas ruas mal iluminadas. Entre marquises e bancos de jardim, ratos enormes chafurdavam lixo. Não, não eram só ratos, – que visão mais desastrosa – homens, mulheres, crianças disputavam alimentos com cães igualmente famintos. A pobreza se estampava agora não como pano de fundo a quem não se dá importância, mas nosso horizonte na noite entristecida. Incrédulo, olhei para trás para conferir essa diferença em que uns tem tanto e outros nada, e meus olhos não mentiriam, era verdade. Os músicos haviam sumido, as pomposas damas, os cavalheiros evaporaram e o salão ficou vazio. Não havia o brilho de antes, apenas velas respingando cera no assoalho.
Acordei no meu quarto num momento em que a consciência costuma conversar com si própria, e vi, nesse acordar, a realidade fria. A diferença social de nossa gente é gigante e precisa ser contida. Enquanto uma parte se sacia nos prazeres e até lascívia, a outra, sem casa e sem emprego, sem saúde, sem escola, sem esperança, sem um Norte passa necessidades básicas sob marquises e barracos, nas portas de açougues por ossos e nos lixões à procura de sobrevivência. O crime grassa fértil e a massa de miseráveis famélicos, aos poucos se enfurece sem querer, emburrecida na sua miséria em busca de dignidade.
O pior de tudo é que nessa realidade perversa ainda não aprendemos cobrar como se deve desses – sem exceção – velhacos da política que se locupletam da vida dos seus. Precisamos que tenham em definitivo disposição, coragem e ação para mudança e que parem de se digladiar exclusivamente pelo poder.