*Ana Clara Fonseca
Durante um desastre natural, o foco quase sempre se concentra nas sirenes, nas imagens dramáticas e nos mapas coloridos dos alertas meteorológicos. Mas o verdadeiro impacto dessas catástrofes começa depois — quando o silêncio volta e as feridas, físicas e emocionais, permanecem abertas. E, infelizmente, elas têm se tornado cada vez mais frequentes.
Nas últimas semanas, o ciclone extratropical que atingiu o Sul e o Sudeste do Brasil voltou a expor a vulnerabilidade do país diante dos extremos climáticos. O fenômeno provocou ventos que ultrapassaram 100 km/h, chuvas intensas acima de 170 mm em algumas regiões e destruição em diversos estados — Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. Houve destelhamentos, deslizamentos, bloqueio de rodovias e quedas de energia que afetaram centenas de milhares de pessoas.
O episódio chega a menos de um ano das enchentes históricas que devastaram o Rio Grande do Sul em 2024, quando cidades inteiras ficaram submersas e milhares de famílias perderam tudo. A recorrência desses desastres reforça que o Brasil está diante de uma nova era climática — mais instável, imprevisível e perigosa.
A atuação rápida da Defesa Civil e dos governos estaduais merece reconhecimento. Equipes foram mobilizadas, abrigos foram abertos e vidas foram salvas. Mas a pergunta permanece: até quando essas ações serão apenas emergenciais? A cada catástrofe, o país vive um ciclo de comoção e esquecimento. Quando as águas baixam, o planejamento desaparece junto com elas.
A Organização Meteorológica Mundial (WMO) e o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já alertam que o planeta está perigosamente próximo de ultrapassar o limite de 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais, um ponto crítico estabelecido no Acordo de Paris. Segundo o relatório mais recente da WMO, os últimos 12 meses (entre 2023 e 2024) foram os mais quentes da história desde o início dos registros, com média global 1,6 °C acima da era pré-industrial.
Esse aumento parece pequeno, mas seus efeitos são devastadores: ele intensifica tempestades, prolonga secas, eleva o nível dos oceanos e potencializa fenômenos como ciclones extratropicais. O que antes era exceção passou a ser regra — e o Brasil, com seu território continental e infraestrutura desigual, sente esses impactos de forma cada vez mais dura.
A ajuda humanitária, nesses contextos, precisa ir além do improviso e se apoiar em um sistema coordenado. Ela envolve logística precisa, gestão de recursos, distribuição equitativa de suprimentos e integração entre Defesa Civil, Corpo de Bombeiros, Cruz Vermelha, agências da ONU e organizações locais. Essa coordenação é o que transforma solidariedade em efetividade — garantindo que a ajuda chegue a quem realmente precisa, sem sobreposição de esforços, desperdícios ou lacunas críticas.
Esse tipo de atuação é guiado pelos pilares do Direito Internacional Humanitário, que também regem respostas a emergências climáticas: humanidade, imparcialidade, neutralidade e independência.
• Humanidade, para colocar a vida e a dignidade das pessoas acima de qualquer outra prioridade;
• Imparcialidade, para que a ajuda alcance todos, sem distinção de raça, credo ou condição social;
• Neutralidade, para manter a confiança das populações e evitar interferências políticas;
• Independência, para garantir que o auxílio não dependa de agendas governamentais ou partidárias.
A solidariedade precisa ser mais do que emoção: deve ser organizada, profissional e constante, guiada por dados, planejamento e preparo.
O que me preocupa é que continuamos tratando os desastres como eventos isolados, quando já são parte de uma rotina climática global. É hora de agir antes da próxima sirene. Precisamos investir em educação sobre riscos, infraestrutura resiliente, planos de evacuação eficientes e políticas públicas permanentes de adaptação climática.
O drama vivido no Sul e Sudeste ecoa em outras regiões do país e do mundo. No Norte, a seca prolongada ameaça comunidades ribeirinhas e indígenas; no Nordeste, as chuvas torrenciais voltam a provocar deslizamentos; na América Latina e na África, milhões de pessoas enfrentam crises silenciosas, invisíveis às manchetes. Essas realidades não competem — elas se somam e exigem de nós uma solidariedade sem fronteiras, menos fotogênica e mais efetiva.
Quando as câmeras se vão e a lama seca, é aí que se mede o quanto o país realmente aprendeu. Reconstruir não é apenas levantar paredes ou trocar telhados: é reerguer a noção de humanidade e transformá-la em resiliência coletiva.
*Ana Clara Fonseca, membro sênior da IEEE, da International Society of Emergency Manners e voluntária do time de disaster relief da Red Cross Utah (USA)






























