Houve época em que um adolescente entrar em conflito com a lei era praticamente uma sentença definitiva para um futuro sem oportunidades e, muito provavelmente, por caminhos errados. Porém, a socioeducação ganhou cada vez mais relevância, e o trabalho realizado para além do simples “tirar de circulação” deixou de ser exceção para virar exigência.
O Paraná é referência nacional nesta área, com cada vez mais investimentos na reinserção social de adolescentes que cometeram atos infracionais. Entre os objetivos do processo de ressocialização estão o fortalecimento de vínculos familiares, o incentivo aos estudos, às práticas esportivas e culturais, e o estímulo à qualificação profissional.
Em 2021, o Paraná foi vencedor do Prêmio Prioridade Absoluta, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na categoria poder público, pelo projeto “Clube de Leitura – Práticas de leitura e ação reflexiva com adolescentes privados de liberdade”, desenvolvido no Centro de Socioeducação (Cense) Londrina II durante a pandemia. A metodologia de trabalho tem como base os “grupos reflexivos”, justamente no contexto do isolamento.
Os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa precisam ter voz e, nos encontros do “Clube de Leitura”, depois de ler livros nacionais e internacionais discutem ideias como liberdade, crítica e diálogo, fundamentais para o processo de recuperação. Tais pilares são fortalecidos por meio de exercícios de respeito ao outro, ao considerar como legítima a história, as dores e amores. O protagonismo dos adolescentes no debate é fundamental para o êxito da atividade.
O diretor do Cense Londrina II, Amarildo Pereira, fala da importância do trabalho de estímulo à educação e ao hábito da leitura na unidade. “Ser premiado em nível nacional traz luz e credibilidade ao nosso trabalho. Mas, melhor do que isso, é ouvir dos adolescentes que esses projetos trouxeram a eles novos sonhos e consequentemente novas possibilidades”, comemora.
A assistente social Andressa Cândido também se emociona ao falar dos projetos que abriram o sistema socioeducativo, justamente no momento em que o mundo se fechava diante da pandemia. Para ela, o prêmio consolida um trabalho que muitas vezes é banalizado e desacreditado.
“Premiações como essa, do CNJ, dão visibilidade às práticas inovadoras, como as nossas, e incentivam os demais para sair da velha lógica prisional do estudar, trabalhar e fazer uma família. Ampliam a visão no atendimento socioeducativo que atenda as necessidades dos nossos adolescentes, desconstruindo preconceitos, barreiras e quebrando paradigmas”, assegura.
Além disso, o Estado também foi finalista no Premio Innovare, com os projetos “Gestão Socioeducativa e Práticas Restaurativas: a experiência dos círculos de cuidado”; “Caderno de Socioeducação: Socioeducação e Diversidade? Um Protocolo de Atendimento ao Público LGBT na Socioeducação”; e “Plano de Contingência de Prevenção ao Contágio pelo Novo Coronavírus (Covid-19) nas Unidades Socioeducativas do Estado do Paraná”.
Nesse aspecto, houve um olhar amplo sobre todos os meandros do sistema que carecem de atenção por parte dos agentes educacionais: pandemia, invisibilidade, restauração do dano causado, convívio social e responsabilidades.
Rogério Carboni, secretário interino da Justiça e Cidadania do Paraná (Seju), destaca o trabalho desenvolvido pelos profissionais da socioeducação. “Nossa rede faz um trabalho fundamental na reinserção desses jovens na sociedade”, afirma o secretário. “O objetivo é fazer com que eles encontrem o atendimento humanizado, o suporte psicológico e educacional, a qualificação profissional e todo o apoio que necessitam para que construam um futuro melhor”.
A chefe da Coordenação de Gestão do Sistema Socioeducativo (CGS), Lídia Ribas, destaca que as ações proativas são complementadas com o investimento constante em qualificação estrutural do sistema. “As obras e reformas das unidades socioeducativas viabilizaram espaços mais apropriados para o desenvolvimento de atividades pedagógicas, profissionalizantes, de cultura, lazer e esporte”, explica.
NA PRÁTICA – Mais do que premiações e reconhecimento público, é a transformação na vida dos egressos da socioeducação que demonstra a eficiência do trabalho. E não são poucas as histórias de jovens que, por algum motivo, acabaram entrando em conflito com a lei e, por meio dos trabalhos realizados nos Censes e nas Casas de Semiliberdade, conseguiram encontrar um novo norte.
Há até mesmo trajetória que virou livro. Quando jovem, C. passou pela socioeducação e, amparado pelos profissionais do Cense Londrina II, encontrou na leitura um escape para a mente durante sua permanência no sistema. “Durante a semana realizavam atividade externa na Biblioteca Municipal. Foi através dessa atividade que comecei a ter contato com os livros, e a leitura me possibilitou enxergar um novo mundo de oportunidades”, conta.
“Nesse processo, consegui aprimorar a comunicação, escrita e o senso crítico. Na verdade, a educação me salvou de coisas erradas. Por meio dela, consegui superar muita coisa e me foi possível acessar a Universidade pública”, destacou o egresso, que hoje é assistente social. E mais do que encontrar um novo sentido para a vida, ele também viu a possibilidade de influenciar a vida de outras pessoas. “Era um sonho meu escrever um livro e eu consegui. Nele, mostro para os adolescentes e sociedade que é possível mudar de vida, basta acreditar em si mesmo”, relata.
Outra história surpreendente é a de H., de 16 anos, menor aprendiz na Administração Estadual. Ele passou pelo sistema socioeducativo, deu um giro de 180 graus nos últimos anos e hoje mira uma carreira profissional e se prepara para a paternidade. Ele está entre os jovens beneficiados pelo Programa Estadual de Aprendizagem, realizado pelo Governo do Estado. As atividades tiveram início em março de 2022 com previsão de término em abril de 2023.
FAMÍLIA – O fortalecimento de laços familiares é algo muito valorizado no sistema de socioeducação paranaense por uma visão estratégica. Isso porque o suporte familiar durante o processo de ressocialização é um fator determinante, uma vez que traz mais segurança e paz para quem precisa passar pelo sistema.
Além disso, em muitos casos, adolescentes e jovens que acabam na socioeducação têm históricos de falta de um convívio familiar saudável ou de influência negativa de más companhias. Foi o caso da jovem J., por exemplo, que passou pelo Cense Feminino Joana Richa, em Curitiba. “Minha mãe tinha problemas com drogas, e meu pai abandonou a família”, relembra.
Durante a infância, era a companhia dos irmãos que gerava momentos felizes e agradáveis, além das boas memórias que leva consigo hoje em dia. Porém, o ciclo de amizades acabou levando J. a um caminho conturbado. “Acabei começando a usar drogas e, em seguida, passei a praticar pequenos furtos para sustentar o vício”, conta. “Era um momento de descobertas na adolescência, de libertação, diversão sem limites, e isso cobrou o preço”.
Na socioeducação, ela compreendeu que não se tratava apenas de uma prisão, mas de uma possibilidade de tomar novos rumos. “Convivi com outras meninas maravilhosas, que me fizeram entender que ali poderia ser uma segunda chance. Além disso, as pessoas que cuidavam de nós eram excelentes”, destaca. “Os profissionais nos influenciaram muito na leitura, e eu adorava ler, era o meu melhor passatempo. A gente lê livros, faz cursos e sempre tem alguém conversando conosco, aconselhando”.
J. passou três anos dentro do sistema, e lá viu seus pensamentos e atitudes se transformarem. “Minha família sempre esteve comigo, minha madrinha nunca deixou de me visitar, e isso foi essencial para a transformação da minha vida”, reforça. “Quando eu saí do sistema, só queria uma liberdade de verdade, sem riscos nem peso na consciência. Saí bastante, conheci novas pessoas, hoje estou casada e tenho filho. Meu marido e eu trabalhamos e conseguimos nos dividir bem entre o emprego e a atenção ao pequeno. É uma vida nova e muito melhor”, celebra.
BATALHA DE RAP – No Brasil, não são raras as histórias de pessoas que tiveram suas vidas e de suas famílias transformadas por meio das artes. E a rede de socioeducação paranaense entende que esta é uma ferramenta fundamental na ressocialização. No caso de T., egresso do Cense de Foz do Iguaçu, a música foi uma ferramenta de libertação.
Próximo da maioridade, algumas escolhas erradas acabaram levando o rapaz para a socioeducação, baseado na influência de más companhias e no uso de drogas desde a adolescência. “É muito difícil ficar recluso, longe da família, namorada. Durante a pandemia, então, com o isolamento, a saudade era muito grande”, relata. Vindo de uma família religiosa e muito carinhosa, ele encontrou forças para superar o momento difícil.
“Meu pai é exemplo de um grande homem, e eu firmei um compromisso com Deus de que andaria pelo caminho certo quando saísse do Cense. Hoje estou livre das drogas, do álcool e do cigarro, e nem cometo os erros que me levaram até aquela situação”, celebra T.
Dentro da socioeducação, ele se interessou mais por música e conheceu mais sobre o hip hop. “Um talento meu que eu não conhecia era o musical. Participei de batalhas de rap dentro do Cense e até mesmo de eventos envolvendo internos de outras unidades. Fiz uma letra baseada na minha história e foi incrível”, relembra o jovem. “Além da música, a equipe do Centro me encaminhou para cursos legais, como de administração, de autoconhecimento, curso de ultrainteligência, de processo seletivo e pessoal de trabalho”.
“Sempre fui muito bem tratado, com respeito e dignidade. Entendi que era uma nova chance e abracei, e isso mudou completamente a minha vida”, finaliza T.
ESTRUTURA – A Coordenação de Gestão do Sistema Socioeducativo tem como atribuição primordial a gestão e a qualificação do atendimento socioeducativo de internação, internação provisória e semiliberdade, de acordo com as normas e recomendações do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e dos demais compromissos nacionais e internacionais de direitos humanos.
Estão instaladas em todo o Estado 28 unidades, distribuídas de forma descentralizada em 16 municípios. Desse total, 19 são Centros de Socioeducação, instalados em Campo Mourão, Cascavel (2), Curitiba (2), Fazenda Rio Grande, Foz do Iguaçu, Laranjeiras do Sul, Londrina (2), Maringá, Paranavaí, Pato Branco, Piraquara, Ponta Grossa, Santo Antônio da Platina, São José dos Pinhais, Toledo e Umuarama.
Além dos Censes, há nove Casas de Semiliberdade, em Cascavel, Curitiba (2), Foz do Iguaçu, Londrina, Paranavaí, Ponta Grossa, Toledo e Umuarama. O Governo do Estado está construindo a décima Semiliberdade no município de Maringá. Garantem o atendimento nas 28 unidades em funcionamento 1.150 servidores estaduais efetivos na socioeducação, além de colaboradores e voluntários externos, que auxiliam em projetos sociais e atendimentos diversos, de acordo com as ações realizadas em cada unidade.
SÉRIE – “Paraná, o Brasil que dá certo” é uma série de reportagens da Agência Estadual de Notícias. São apresentadas iniciativas da administração pública estadual que são referência para o Brasil em suas áreas. Confira AQUI as reportagens já publicadas da série.