*Renato Benvindo Frata
Não se conta idade apenas pelo ano de nascimento, mas também por lembranças, ou coisas que as trazem até nós mostrando que o tempo, ao passar, invariavelmente deixa rastros. A sua profundidade na lembrança é que variará conforme a importância. Foi num desses acasos que um arrepio cortou-me eriçando pelos na sensação ruim dos nervos encolhidos. Um susto, a bem dizer, desse que quando chega, fica indelével. É que esgravatando gavetas em móvel antigo, encontrei entre papéis carcomidos o ontem, que me levou ao meu pai debruçado à mesa e se deliciando com a leitura.
Encontrei o passado enxaguado, secado e encerado na constatação sombria de que sou do século vinte e que, se não viver bem o hoje, talvez não tenha o amanhã. Pé-de-pato-mangalô-treis-veis! E-mais-treis, como dizíamos espantando superstições.
Sim, encontrei nessa gaveta um Almanaque Capivarol, de 1968. Claro que gente nova não saberá do que falo, mas, os de sessenta com os cabelos embranquecidos, dentes substituídos, pele plissada e óculos de graus, poderão se lembrar dessa raridade. Tanto do almanaque que se espalhava em propaganda, quanto do medicamento Capivarol. Quem não tomou capivarol? Quem saberia dizer quem não tomou? Todos tomavam, dos mamando a caducando…
Os almanaques eram uma espécie de gibi com textos e figuras, calendários do ano, curiosidades com relação aos feriados e datas comemorativas, as anedotas de salão próprias a todas idades, os períodos favoráveis do plantio à colheita, a lua propícia para a pesca, as previsões de chuva, os excertos com rimas e pequenos poemas e receitas, os causos da sabedoria popular, etc., distribuídos gratuitamente em farmácias. Serviam ainda para divulgar medicamentos, as discutidas bulas que eram lidas, relidas e trelidas como os Almanaques do Biotônico Fontoura, da Akilostamina, disputados como as hoje figurinhas de futebol. A casa que se prezasse guardava o tal almanaque para consulta.
Pois procurei saber sobre o tônico: o Capivarol foi inventado por Barbosa Leite e era um composto de catuaba, guaraná e óleo de capivara que curava maleita, tuberculose em 1º grau e todas as moléstias ocasionadas pelo depauperamento orgânico, escrófulas, raquitismo, reumatismo e sífilis, anemia, debilidade, moléstias nervosas, etc. Atente-se que o etecétera do final da frase queria dizer “qualquer mal” com que o vivente vinha se defrontar.
É que no tempo das comunicações difíceis, dos telefonemas completados somente horas depois pela telefonista, os correios movidos a trens, charretes e cavalos, as estradas por abrir, as conduções e inventos a se desenvolverem, somente o rádio a válvulas, jornais vencidos e os deliciosos almanaques davam conta das notícias do mundo, das novidades, porque de tardezinha as pessoas tratavam de alimentar amizades se sentando em cadeiras na calçada para prosear sobre os assuntos do dia, das doenças e das curas.
Coisas do ontem… lembranças que acabam chegando em nossas mãos para lembrar que marcas podem ser feitas na areia quando o vento as desmanchará, ou sulcando a argamassa que se endurece, para ficar conosco uma eternidade.
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