TATIANA CAVALCANTI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Aos 12 anos, a estudante Ana Clara de Abreu descreve como um cenário de guerra os momentos seguintes à enchente que invadiu a garagem de sua casa, na Vila das Belezas, distrito de M’Boi Mirim (zona sul de SP), em dezembro de 2020. Na ocasião, a água danificou um caminhão, um carro e uma moto da família, que arcou com o prejuízo de consertar os veículos, que já não funcionam mais como antes.
“Foi assustador e não tivemos como reagir, porque a chuva foi forte e logo começou a invadir nossa casa. No dia seguinte, parecia a terceira guerra mundial, tudo devastado nas ruas”, conta a estudante.
Desde agosto, Ana Clara faz parte de um projeto em sua escola que pretende mapear com garrafas PET, e com a ajuda da população, áreas de risco que não estão no radar das medições oficiais de chuvas.
Com o aplicativo Dados À Prova D’Água, desenvolvido pela FGV (Fundação Getulio Vargas) em parceria com o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações) e instituições da Alemanha e da Inglaterra, moradores vão coletar e abastecer a rede com dados que ficarão disponíveis às autoridades para ações de prevenção da Defesa Civil, por exemplo, e, com isso, evitar tragédias comuns na temporada de chuvas.
Com esse serviço, que envolve a união de políticas públicas e privadas, é possível inserir informações sobre alagamentos, intensidade da chuva, milímetros de água e nível do rio. O app estará disponível a partir de fevereiro.
A vantagem do método em relação às medições tradicionais é que, além de ser mais barato e fácil de ser realizado, envolve a comunidade na coleta de dados, o que ajuda a ampliar o mapeamento das áreas de risco e, ainda, os governos podem complementar seus modelos de previsão de inundações.
No Brasil existe falta de informações expressiva, de acordo com João Porto de Albuquerque, pesquisador principal do projeto e professor titular de analítica urbana da Escola de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Glasgow, na Escócia.
“Em contato com o Cemaden, notamos que as enchentes são cada vez mais frequentes. E a gente não tem informações sobre todos os lugares que são afetados”, afirma Porto.
“Temos uma desigualdade de dados grande que reflete a desigualdade do nosso país. Em São Paulo há informações melhores que no Acre. Então, trabalhamos inicialmente com essas duas cidades, São Paulo e Rio Branco, dois extremos onde as chuvas afetam a população de formas distintas, mas igualmente devastadoras.”
O pesquisador afirma que dentro de São Paulo a desigualdade de informações também é uma realidade. “Os dados do centro da capital paulista são muito melhores que no M´Boi Mirim, bairro onde a gente vem desenvolvendo a pesquisa, mais especificamente no Jardim Ângela e no Jardim São Luiz.”
O aplicativo pretende construir uma rede de monitoramento regional para complementar a já existente, segundo a coordenadora do projeto Waterproofing Data no Brasil, Maria Alexandra Cunha, do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da FGV.
Os medidores de chuvas oficiais (pluviômetros) automáticos são mais precisos, mas são caros, segundo ela, e possuem pontos não alcançados. “O projeto propõe menos rigor, mas uma forma mais fácil de construir uma medição mais territorial. A ideia é espalhar essa rede e, assim, a medição se torna mais precisa.”
Para isso, ela explica, foi preciso envolver a comunidade com ações educacionais em quatro escolas –duas em São Paulo e duas do Acre.
A estudante Ana Clara não está sozinha na coleta de dados. Ela e outros colegas de turma da escola estadual Professor Renato Braga aprenderam a criar pluviômetros com garrafas de plástico e uma régua –o pluvipet–, que devem ser monitorados a cada 24 horas. Tudo sob a supervisão da professora Dayane Almeida de Sousa, 34, que incluiu o projeto em uma aula eletiva.
“Alguns alunos se empolgaram no início com a parte prática de cortar a garrafa e colocar a régua para medir a chuva”, conta Dayane. “Mas muitos acharam o monitoramento chato, porque não estava chovendo. Eles achavam que não estava funcionando. Mas expliquei que ‘zero chuva’ também é um dado.”
Naquela escola, o projeto foi desenvolvido com os alunos de ensino fundamental. “Me senti um cientista”, afirma Nicolas Melo, 11. Mas sua mãe, segundo ele, jogou fora o pluvipet que ele fez em casa. “Ela achou que aquela água era dengue.”
Aluna da mesma sala, Rafaella Costa, 11, conta que faz medições desde setembro e troca a água excedente, se houver, toda tarde, às 17h. “Coloquei no parquinho do prédio, com a autorização do zelador. É interessante ajudar a coletar dados em prol do coletivo.”
“Criamos conhecimento para o bem comum. Seguimos as informações de um instituto de pesquisa e da população porque, na prática, os dados precisam circular, as pessoas precisam saber o que está acontecendo”, diz Rachel Trajber, coordenadora do programa Cemaden Educação.
Ela explica que existe um trabalho de “polinização” em escolas de outros três estados: Pernambuco, Santa Catarina e Mato Grosso. “Foi possível dar voz a essas populações. Com isso, elas criam o compromisso de atualizar os dados no aplicativo. As ações nas escolas são fundamentais.”
Um outro braço do projeto consiste em gravar depoimentos de moradores sobre enchentes para mostrar às novas gerações. A secretária Mara Cintra, 51, além de ajudar a mapear as áreas de risco, coletou algumas dessas histórias. A dela própria já vale um vídeo.
“Após a missa na véspera de Natal de 2010, tentamos sair da igreja e nos deparamos com enxurrada que acumulou uma montanha de lixo na porta.”
No Acre, o coronel da Defesa Civil James Joyce Bezerra Gomes, coordenador da rede de alertas do estado, conta que o aplicativo já tem ajudado a nortear suas ações. “Será essencial para emitir alertas às famílias que vivem em áreas de risco de inundações.”
Gomes diz, ainda, que a Defesa Civil usa o pluvipet para fazer suas medições, que são catalogadas no aplicativo, e emite boletins diários via WhatsApp a gestores, que repassam à população. “Com certeza esse aplicativo vai fazer a diferença para salvar vidas.”
O projeto de mapeamento das chuvas –financiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e instituições estrangeiras – custou 1,4 milhão de euros (aproximadamente R$ 8,7 milhões).
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