THAÍSA OLIVEIRA E FABIO SERAPIÃO
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS)
Documentos em posse da Polícia Federal na operação Última Milha indicam que servidores da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) lotados no CIN (Centro de Inteligência Nacional) utilizaram o software espião FirstMile durante o governo Jair Bolsonaro (PL).
O CIN tem origem em um decreto de Bolsonaro, assinado em julho de 2020, que criou novas estruturas dentro do organograma da Abin, à época chefiada por Alexandre Ramagem, atual deputado federal e pré-candidato do PL à Prefeitura do Rio de Janeiro.
Ramagem nega irregularidades e afirmou, por meio e sua assessoria, que o “departamento de operações, composto exclusivamente de servidores de carreira da Abin, era o único responsável pela gestão, senhas e execução do sistema.”
A justificativa para criação do CIN foi planejar e executar “atividades de inteligência” destinadas “ao enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado” e assessorar órgãos competentes sobre “atividades e políticas de segurança pública e à identificação de ameaças decorrentes de atividades criminosa”.
Foram colocados em cargos de chefia na nova estrutura servidores da agência e policiais federais próximos a Ramagem e da família Bolsonaro, o que fez com que o CIN fosse apelidado de Abin paralela.
O centro foi desmontado pela reestruturação promovida pela atual direção da Abin, já no governo Lula (PT), após a operação da PF que mirou o software espião.
O FirstMile foi utilizado pela Abin entre 2019 e 2021. Ele foi adquirido e ficava “hospedado” em computadores da Diretoria de Operações de Inteligência, mas depoimentos de servidores e documentos de apurações internas da Abin mostram o uso por solicitação de pessoas ligadas ao CIN.
Sobre um servidor alvo de busca pela PF, a decisão do ministro Alexandre de Moraes que autorizou a operação afirma que ele era “o responsável pela fiscalização contratual do sistema FirstMile e, mesmo transferido de setor, continuou a realizar consultas pelo Centro de Inteligência Nacional.”
“O servidor, ainda, tinha plena ciência da característica intrusiva da ferramenta que questionou, na condição de fiscal do contrato, o fato de a empresa fornecedora ter perdido a eficácia em relação a operadora Tim”, diz a decisão.
Como mostrou a Folha de S.Paulo, uma troca de e-mails entre oficiais da Abin e funcionários da empresa vendedora do FirstMile é utilizada pela PF como prova de que a ferramenta invadia a rede de telefonia nacional.
O uso pelo CIN, fora do setor onde o programa estava instalado, aparece ainda em outro trecho do inquérito da PF, em que os investigadores analisam um PAD (Processo Administrativo Disciplinar) da Abin contra dois servidores que denunciaram o uso do software espião para tentar escapar da demissão.
“Destaca-se que a comissão de PAD identificou a utilização do sistema a pedido dos responsáveis pelo CIN”, diz a PF.
O uso da ferramenta na gestão Ramagem e o próprio delegado estão na mira da PF. A suspeita é que a Abin usou ilegalmente, durante o governo Bolsonaro, o FirstMile contra jornalistas, políticos e adversários do ex-presidente.
Os indícios colhidos pela PF levaram à deflagração, em outubro do ano passado, da operação Última Milha.
Foram cumpridos 25 mandados de busca e apreensão e dois de prisão preventiva nos estados de São Paulo (2), Santa Catarina (3), Paraná (2) e Goiás (1), além do Distrito Federal (17).
A PGR (Procuradoria-Geral da República), ao se manifestar favorável às buscas e prisões na investigação, cita a suspeita de que Ramagem se corrompeu para evitar a divulgação de informações sobre o uso irregular do software espião durante sua gestão.
A ameaça de divulgação, aponta, foi feita pelos dois servidores alvos da apuração interna por suposto envolvimento em uma fraude licitatória no Exército.
O ex-diretor da Abin, segundo a Procuradoria, converteu o julgamento da investigação interna contra os dois em diligência, com a nomeação de nova comissão processante, e deixou de submeter as conclusões da primeira comissão ao ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), responsável por apreciar e decidir sobre esses casos.
Dessa forma, ele teria postergado a demissão dos servidores e uma possível divulgação do uso do FirstMile.
Sobre a compra e o uso do programa, a PF diz que Ramagem está entre os responsáveis pelas ações e omissões e faz parte do “núcleo da alta gestão”, integrado por policiais federais lotados em cargos de assessoramento e direção na Abin durante o governo Bolsonaro.
“A potencial ciência e participação dos então responsáveis pela gestão da Abin ganha relevo quando, em ação extemporânea após o esgotamento do uso da ferramenta, constroem processo administrativo ‘correicional’ para garantir a ‘legalidade a posteriori’ de suas ações”, diz a PF.
Procurado, Ramagem disse por meio de sua assessoria que o CIN foi “criado para cumprir atuação da Abin como órgão central do sistema brasileiro de inteligência e implementar inteligência corrente e coleta estruturada de dados.”
Sobre os servidores e policiais federais lotados no CIN utilizarem o FirstMile, ele afirmou que os “centros, diretorias e superintendências da Abin possuem demandas de inteligência, mas apenas o departamento de operações utilizava a ferramenta.”
Ramagem disse ainda que a investigação da PF só foi possível porque sua gestão “fez correição e investigação na corregedoria” sobre o sistema.
“Outras instituições adquiriram a mesma ferramenta, sem notícias de providências de auditoria. Não me encontro como investigado, já tendo inclusive representado à PF contra imputações infundadas”, completou.