Por Daniel Medeiros
Conta a mitologia grega que Sísifo foi um cidadão condenado pelos deuses a uma pena inusitada: subir um morro carregando uma pesada rocha, apenas para vê-la deslizar por todo o trajeto percorrido e começar tudo outra vez. Essa imagem, de repetir a mesma e árdua tarefa sem que se alcance o objetivo almejado, ilustrou, ao longo do tempo, a falta de finalidade da existência humana. Sísifo é a personificação do homem comum, que se esfalfa a vida inteira na esperança de, em algum momento, receber a recompensa merecida, mas tudo o que acontece é um “quase”, seguido por uma nova empreitada morro acima.
Os meses de um ano são como as tarefas de Sísifo: muito esforço e, à medida que o cimo do morro vai se aproximando, as esperanças se renovam. Fazemos planos e traçamos resoluções, acreditando que tudo vai ser diferente. Na virada do ano, gritamos e comemoramos o fim de algo como se fosse mesmo o fim. Talvez, por essa distração, não percebemos que a rocha, lentamente, faz seu caminho de volta para o pé do morro. Quando a festa acaba e acordamos entorpecidos pelos excessos da folia, percebemos que nada mudou e que o dever da repetição nos aguarda mais uma vez.
A única maneira de não sofrer com o absurdo dessa descoberta é não ter consciência dela. Por isso, a cobrimos com outros nomes e a dotamos de outras intenções. Se compreendemos que a vida é um eterno rolar pedras morro acima e vê-las rolarem morro abaixo, então, em algum momento, pode surgir a pergunta que é, segundo o filósofo Albert Camus, a única verdadeira questão da existência humana: o que fazer? Continuar? Ou, como diria o poeta João Cabral de Mello Neto, “pular da ponte da vida”?
Visto que, se estou escrevendo este texto e você o está lendo, optamos por continuar, ou seja, aceitamos o absurdo e buscamos, nele, um sentido para continuarmos em nossa faina de crescer, produzir, prover, cuidar, envelhecer e, só então, quando as pernas falharem, deixar a pedra rolar pela última vez.
O que é preciso destacar é a razão pela qual os deuses puniram Sísifo. Ele era um rebelde que não aceitava a Morte, tendo-a enganado duas vezes. Não acreditava na clarividência dos deuses, tendo-os enganado também. Ele era um mortal orgulhoso de sua inteligência e capacidade de criar seus próprios caminhos, desafiando o destino, as determinações, o controle dos deuses. Por isso, a ofensa e o castigo. Sísifo pagou para ver, desafiou e foi inigualável ao mirar a cara de Tânatos, de Hades, furiosos.
Albert Camus escreve um belo livro sobre esse personagem inigualável, afirmando que “toda a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe pertence. A rocha é sua casa. Da mesma forma, o homem absurdo manda todos os ídolos se calarem quando contempla o seu tormento. No universo que repentinamente recuperou o silêncio, erguem-se milhares de vozes maravilhadas da Terra.
O ano novo começa, nossa vida recomeça. Se temos consciência disso, sabemos que haverá pedra e haverá subida. Quando a pedra deslizar e se perder lá embaixo, estaremos no alto do morro e seremos livres. Não será por muito tempo, mas será um tempo único e incrível. Depois, desceremos com o vento no rosto, sentindo as forças da natureza restaurando nosso cansaço. E será hora de encarar a pedra novamente, com a alegria de quem sabe o que está fazendo.
Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo. @profdanielmedeiros