*Daniel Medeiros
Há tanta diferença entre nós e nós mesmos como há entre nós e os outros – Michel de Montaigne
Otto Ohlendorf era economista e advogado, falava várias línguas e tinha uma cultura refinada, além de uma aparência atraente e uma fala que seduziu ao próprio juiz que o condenou à morte: “Ele parece uma pessoa legal”, disse durante o julgamento. Otto Ohlendorf chefiou um grupo de extermínio que matou milhares de homens, mulheres e crianças judias na Moldávia e na Ucrânia. Assim como o grupo dele, cerca de 600 outros batalhões de extermínio agiram na região durante o avanço alemão para o Leste. Da mesma forma, 60 mil policiais alemães, muitos recrutados entre a população civil – marceneiros, padeiros, floristas – fuzilaram centenas de milhares de judeus, que eram alinhados em filas, de pé ou de joelhos, em covas cavadas, muitas vezes, pelas próprias vítimas. Tudo por ordem do Führer. Tudo pelo bem do Reich. Só o Batalhão de policiais de Hamburgo, com pouco mais de 50 homens, foi responsável pela morte de quase vinte mil judeus.
O que é mais relevante nessa trágica história, contada pelo documentário Homens Comuns : assassinos do Holocausto, com direção e roteiro de Manfred Oldenburg, é que esses cidadãos alemães não eram obrigados a essa prática de extermínio sistemático, como se costuma imaginar e como vários alegaram nos julgamentos – “se eu não fizesse aquilo eu seria morto” – mas, mesmo assim, a maioria deles aceitou a tarefa e, muitos mostraram-se realmente à altura do encargo sombrio. Um deles chegou a levar a esposa para mostrar o seu “trabalho” em um dia no qual, ao desocupar um gueto, mil judeus foram assassinados pelo batalhão ao qual ele orgulhosamente pertencia. Outro não se contentava em alinhar e atirar na cabeça de mulheres e crianças indefesas, mas as despiam e exigia que elas rastejassem até o fundo da vala, enquanto incitava seus companheiros a bater nelas com porretes.
Esses homens comuns, na sua grande maioria, sobreviveram à Segunda Guerra e permaneceram como quadros das forças policiais alemãs, sem qualquer investigação ou punição. Alguns, como Otto Ohlendorf, foram presos e condenados à morte. Aliás, quando lhe perguntaram se ele se arrependia do que havia feito, ele simplesmente respondeu: “Faria isso com minha filha se me fosse ordenado”. Antes de sua execução, o assistente do promotor e responsável pela pesquisa que descobriu o papel relevante desses batalhões no extermínio de judeus (calcula-se que dos seis milhões de judeus mortos, cerca de dois milhões tenham sido executados em fuzilamentos realizados por estes grupos), Benjamin Ferencz foi ao quarto de Otto, esperando que ele mandasse alguma mensagem para a esposa e filhos, mas nada conseguiu. Otto, um homem sem nenhum passado traumático ou história de vida marcada por violência, acreditou em seu chefe e executou suas ordens porque considerava que eram boas para a Alemanha. Quando perguntaram a ele por que matar também as crianças, ele respondeu: “Para que elas não cresçam e se tornem um perigo para a Alemanha do futuro”.
Fica claro como a violência coletiva pode ser resultado de comandos desumanos de governos cruéis e brutais. Essa cadeia de ordens vinda de cima para baixo pode despertar as mais violentas ações em indivíduos comuns. A questão que resta é: por que pessoas com boa educação acatam essas ordens estapafúrdias? O neurocientista David Eagleman aponta uma possível resposta: o eu consciente é o menor participante no cérebro. Ou, como diria o poeta Walt Whitman: “Sou vasto, contenho multidões”.
A Alemanha, após o fim do governo nazista, empenhou-se em construir uma cultura democrática e inclusiva. Praticamente todos aqueles que participaram de atrocidades durante os anos de Hitler colaboraram com o novo governo. Voltaram aos seus silêncios contidos, às suas atividades diárias, ao respeito da lei e dos direitos, guardando dentro de si, um demônio terrível que os habita, às vezes sem nem mesmo ter consciência, à espera de um novo comando vindo de cima.