*Chico Fonseca
Passava das dez horas da noite. A cidade toda recolhida, janelas fechadas, ruas desertas. Um fiapo de lua nova flutuava sobre os telhados, realçado pela fraca iluminação dos raros lampiões. Já era a terceira vez que a sege que transportava Gonçalves Dias passava em frente ao sobrado da Rua de Santana, no. 234. Em galope contido, para não despertar os moradores, a parelha de cavalos seguiu até a Praça da Alegria, e o poeta ordenou ao cocheiro que desse meia volta e passasse por lá uma vez mais.
Já estivera tantas vezes naquela casa como convidado da família de Ana Amélia Ferreira Vale, já tinha participado de saraus, onde seus poemas eram recitados e aplaudidos. Haviam-se passado alguns anos desde que Gonçalves conhecera aquela jovem, na época quase uma menina. Encantado com “seus olhos tão negros, tão belos, tão puros”, Gonçalves já havia lhe dedicado um poema.
Depois de uma temporada no Rio de Janeiro, o nosso poeta estava de volta a São Luís, a convite do governo do estado. Advogado formado em Coimbra, poliglota e bem colocado profissionalmente, poeta reconhecido e admirado por todos, Gonçalves Dias era o que se podia chamar de um bom partido.
Revendo Ana Amélia, agora no esplendor da sua juventude, o encanto pela adolescente transformou-se em paixão ardente pela mulher feita, que também se encantara por aquele homem gentil, culto, de bons modos e prestígio social. Daí a um pedido de casamento foi um pulo.
De traços finos e cabelos lisos, ligeiramente ondulados nas têmporas, herdados do seu pai português, Gonçalves podia ser considerado um homem de boa estampa. Mas tinha um defeito. Um defeito de cor, como diria a escritora Ana Maria Gonçalves: sua pele parda, herdada da mãe, Vicência, uma mestiça, descendente de negros, indígenas e brancos.
Recebê-lo em casa como amigo era motivo de orgulho para qualquer anfitrião. Já uma proposta de casamento… bem, aí seria demais. “Manchar” a prole de uma família nobre com netos mestiços não estava nos planos e nem na mentalidade dos pais de Ana Amélia. E o seu pedido de casamento foi sumariamente recusado.
Apaixonada e inconformada com a decisão dos pais, ela propôs a Gonçalves que a raptasse e a levasse com ele para o Rio de Janeiro, para onde ele já estava com passagem marcada. Raptar a amada! Nada mais coerente com a biografia de um poeta. Ela estava disposta a romper com a família para se tornar sua esposa. Arrumaria suas coisas em uma maleta e aguardaria por ele na véspera da viagem, à noite. Bastaria um assovio embaixo da sua janela. Quando a família percebesse sua ausência, eles já estariam em alto mar.
Mas Gonçalves Dias, com toda a sua verve de poeta, também era um homem comedido, respeitador e leal às suas amizades. Quando a sege passou pela quarta vez em frente ao sobrado, sem conseguir criar coragem para a bravata, o poeta ordenou ao cocheiro que o levasse de volta para casa. E no dia seguinte embarcou sozinho para o Rio de Janeiro.
Passados alguns meses, já na capital do Império, no mesmo ano de 1852, Gonçalves casou-se com Olímpia. Mas o casamento, que nunca fora feliz, se desfez em pouco tempo. O coração do poeta pertencia a outra mulher.
Tempos depois, Ana Amélia recebeu outra proposta de casamento. O novo pretendente, também era miscigenado e de classe social inferior à dela. A proposta foi imediatamente aceita, talvez em afronta aos pais. E, de novo, recusada por eles. Mas dessa vez o pretendente enfrentou a família e entrou na justiça. Como ela já era maior de idade, o juiz lhe deu ganho de causa. Casaram-se e, logo em seguida, mudaram-se para Portugal.
Muitos anos se passaram. Gonçalves estava em Portugal para tratamento de saúde quando, por acaso, num fim de tarde, encontrou com Ana Amélia numa praça. Ela, infeliz no casamento, ele, infeliz na solidão e com a saúde abalada. Mas o encontro reacendeu nos dois o amor da juventude, agora irremediavelmente impossível de se realizar. Arrebatado de paixão revivida, arrependido de não ter ousado assumir o amor que a vida lhe ofereceu, escreveu um dos mais pungentes poemas de amor da língua portuguesa: “Ainda uma vez… Adeus”. Não se sabe como, mas o poema logo chegou às mãos da sua amada. Tocada pela emoção, em momento de desespero, Ana Amélia copiou o longo poema com o próprio sangue.
Desenganado pelos médicos, desencantado com a vida, nosso poeta decidiu voltar para morrer na sua terra natal. Em 10 de setembro de 1864, aos 41 anos, embarcou no navio Ville de Boulogne, no porto de Le Havre, na França, na esperança de rever suas palmeiras e seus sabiás. Mas, já em águas maranhenses, o navio sofreu uma avaria. A tripulação conseguiu se aproximar da praia, no litoral de Guimarães, onde o navio naufragou. Salvaram-se todos os tripulantes e passageiros, menos Gonçalves Dias. Debilitado pela tuberculose, não teve forças para se levantar do seu leito. Não se sabe se ele chegou a rever suas tão decantadas palmeiras antes que o mar imenso se transformasse em túmulo, compatível com a grandeza do poeta.
*Chico Fonseca nasceu em São Luís, em 1949, e é autor do livro Amores, Marias, Marés,
vencedor do concurso literário “Escritores Admiráveis”, publicado pela Editora Jangada